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terça-feira, 6 de novembro de 2012

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Portugal, uma terra mítica para judeus ? 


Foi há cerca de três mil anos que devem ter chegado os primeiros Judeus ao território português. A partir do século V d.C. começaram as perseguições religiosas, um dos temas que Paulo Mendes Pinto, historiador das religiões, aborda neste artigo.


DAS ORIGENS ATÉ À NACIONALIDADE


Se há campo da nossa memória colectiva que com alguma dificuldade conseguimos compreender, ele encontra-se na relação que os judeus ditos sefarditas criaram com o território peninsular, mais propriamente com o português. De facto, dois fenómenos correm paralelos num rio lodoso; por um lado, muito pouco se tem estudado sobre a antiguidade da presença dos judeus na Ibéria, pressentindo-se apenas, que ela será milenar; por outro, de onde virá, como se formou essa estreita relação entre os judeus e Sefarad, uma mítica terra, uma mítica era, um mítico espaço de que resultou, mesmo após a conversão forçada, uma relação e uma proximidade simbólica fortíssimas?
De facto, e apesar de muitas vezes perseguidos, os judeus peninsulares encontraram na Ibéria um espaço de significativa liberdade, quer religiosa, quer de acção. Foi este o fundo que resultou na construção quase mítica da ideia de Sefarad, ao longo dos séculos sempre associada a um espaço de profunda identificação e significativa felicidade.
A palavra, o topónimo Sefarad surge em Abdias, no versículo 20, e veio a ter grande impacto na cultura judaica, pelo menos até ao século XIX. Vejamos o contexto das palavras do profeta:


“Os deportados deste exército,
Os filhos de Israel
Ocuparão as terras dos cananeus até Serepta
Os deportados de Jerusalém
Que estão em Sefarad
Possuirão as cidades de Négueb.”


Abdias, um dos chamados Profetas Menores, pelo escaco tamanho do seu texto, 21 versículos apenas, deve ter escrito depois de 586 a.C., isto é, posteriormente à destruição de Jerusalém, na época de Nabucodonosor.
Desde muito cedo, não sabemos quando, esta realidade designada por “Sefarad” foi identificada com a Península Ibérica. Não podemos saber desde quando, de facto, existiram judeus no território peninsular, mas podemos dizer, com certo grau de verosimilhança, que isso terá acontecido muito cedo, logicamente antes do domínio do romano, aquando da grande expansão comercial dos fenícios.
Mas mais que Sefarad, a palavra Hispânia também nos pode revelar alguns aspectos interessantes. De facto, a palavra pode ter origem semita, de cariz fortemente comercial, podendo ter designado “ilha/costa do Norte” ou “ilha/costa dos metais”.
O Périplo de Hanão, escrito no século V a.C., é uma das fontes mais ricas e mais interessantes para a análise da capacidade de navegação, mobilidade e domínio dos mares por parte dos Fenícios, cultura bastante semelhante e geograficamente contígua ao espaço tradicionalmente atribuído a Israel. Neste contexto, que trata uma viagem fenícia para além das Colunas de Hércules, vemos como seria a navegação para o Atlântico.
Contudo, arqueologicamente, pouco podemos dizer sobre essa antiguidade. Mas temos indicadores que nos falam bem alto. O Antigo Testamento fala-nos de uma sociedade significativamente ligada ao comércio, com as características essenciais de uma sociedade fundada na economia de troca. Assim encontramos nos alvores do mundo dos reinos de Judá e de Israel , nomeadamente no que respeita a todo o tempo dos patriarcas, todo o mundo de semi-nomadismo, as famílias de Abraão, Isaac e Jacob, mas também de José e a sua célebre venda como escravo para o Egipto.
Esses tempos, mergulhados na incerteza das datações, mas remetidos para meados do segundo milénio antes de Cristo, levam-nos a um mundo em tudo diferente do urbano. Um espaço largo, onde as pastagens dimensionavam o horizonte, e onde a troca de víveres era a base da economia fechada de cada grupo humano, de cada família alargada, de cada tribo. Não será por acaso que a organização em tribos se manteve até tarde no imaginário de Israel.
No fundo, e esta generalização quase se pode fazer para todo o mundo semita, Israel tem na sua base identitária, que lhe formulou radicalmente tanto a religião como a sociedade, uma estrutura seminómada onde o elemento tribal e de caravaneirismo é fulcral. De que se podem fazer valer os grupos familiares que pastam o seu gado de pastagem em pastagem, senão vender parte dele de tempos a tempos?
Este horizonte familiar mas, ao mesmo tempo, difuso no espaço, nunca mais o judaísmo o iria perder. No que respeita ao primeiro aspecto, a malha familiar será sempre base de organização dos negócios, sempre de matriz familiar, mesmo quando internacionais. No que respeita ao segundo aspecto, a forma difusa de organização e confinação no espaço, será a própria história a fazer prevalecer este sobre os outros aspectos.
Realmente, desde tempos muito recuados que os judeus trilharam caminhos de fuga, de desvio, de êxodo e de exílio. Desde, pelo menos, os séculos IX/VIII a.C. que comunidades de proto-judeus devem ter acompanhado os fenícios no estabelecimento e desenvolvimento de linhas comerciais com toda a bacia do mediterrâneo, incluindo a Península Ibérica. Desde essa data, mas com especial desenvolvimento desde as conquistas de Alexandre, e depois com o domínio intolerante dos Antíocos, que se espalharam comunidades organizadas de judeus no Norte do Egipto, na Grécia, nas costas da Península Itálica, na Ibéria, podendo mesmo ter chegado ao Vale do Indo, criando hoje uma milenar forma de estar no mundo fundada nessa mesma dispersão das comunidades.
O que fora uma terrível perda de ligação efectiva ao centro do mundo religioso, ao Templo de Jerusalém, foi desde cedo compensado pela criação de laços inter-comunais. Há mais de dois mil anos, um judeu que se lançasse num qualquer negócio, poderia ter a quase certeza de, em qualquer metrópole mediterrânea, encontrar um parceiro, também ele judeu, com quem tratar. Desde esses assentamentos fenícios que os hebreus chegaram ao território actualmente português.
Não é, pois, de estranhar que o Antigo Testamento nos reserve uma radiografia do trato comercial de algumas das elites judaicas. Génesis 37, 25 mostra-nos o comércio com os Ismaelitas: “Depois sentaram-se para comer. Erguendo, porém, os olhos, viram uma caravana de ismaelitas que vinha de Guilead. Os camelos estavam carregados de aroma, de bálsamo e láudano, que levavam para o Egipto”. (Isaías 23; Ezequiel 27, 27) apresentam-nos as parcerias ricas e poderosas com os fenícios: “Quem tomou esta decisão contra Tiro, cidade que distribuía coroas, cujos negociantes eram como príncipes e cujos comerciantes eram como nobres da terra?” e “Quem era como Tiro, gloriosa no coração do mar? Quando as tuas mercadorias desembarcavam, abastecias muitos povos; com a abundância de tuas riquezas e comércio, enriquecias os reis da terra”.
Para o mundo da monarquia, qual senhor pai de família tribal, Salomão surge como exportador ou mesmo como um armador:

“O rei tinha no mar uma frota de naus de Tarsis a navegar com a frota de Hiram; de três em três anos chegavam de Tarsis os navios carregados de ouro e prata, de dentes de elefante, macacos e pavões. Assim, o rei Salomão tornou-se o maior de todos os reis da terra em riqueza e sabedoria.”


O monarca, numa relação directa entre riqueza e sabedoria, será um dos motes para a actividade comercial, tal como sucederá noutra época de esplendor dos judeus, a de D. João II e D. Manuel, em Portugal.
Não é com estranheza alguma que se verifica que os reinos peninsulares, quando na chamada “reconquista” se começam a organizar, chamam os financeiros judeus para dirigir as suas finanças, o que aconteceu, directamente até ao século XVI e indirectamente, através da figura ambígua dos cristãos-novos, até, no caso português, finais do século XVII.
Por proximidade geográfica, os primeiros assentamentos, arqueologicamente atestados, tiveram lugar na costa mediterrânica da península. As mais recentes escavações na baixa lisboeta, cujos dados agradecemos ao Dr. José Luís de Matos, mostram que o local onde os fenícios construíram o seu entreposto no século IX a.C. foi exactamente o local onde, ainda no século XV, se erguia a judiaria.
Livres ou escravos, a importância das comunidades judias foi crescendo de tal modo que , no início do século IV d.C., no Concílio de Elvira, já existem medidas contra a proximidade entre judeus e cristãos, por os primeiros poderem levar os segundos a judaizar.
Em Portugal, na cidade de Mértola, e para data pouco posterior, existe testemunho arqueológico da presença cultural judia através de uma lápide funerária conservada no museu da basílica paleocristã, datada de 482.
Tradicionalmente considerada a mais antiga marca material da presença judia em Portugal é, contudo, possível que um outro artefacto, provavelmente proveniente da cidade romana de Ammaia, constitua um dos testemunhos arqueológicos mais antigos para a datação da presença judaica, não só em Portugal, mas em toda a Península Ibérica.
Trata-se de uma pequena peça glíptica, uma pedra de anel, que deve ter sido encontrada nas ruínas da referida cidade (em pleno Alto-Alentejo, não longe de Marvão) datável do século II d.C. Uma das peças, coma representação do Menorah, o típico candelabro de sete braços, parece demonstrar, por si só, a existência de uma comunidade judaica nesta cidade romana, pelo menos, a de um judeu, entre os séculos II e IV d.C. Para além do Menorah (o candelabro do Templo de Salomão, que surge também na referida lápide de Mértola) outros elementos de claro e directo simbolismoa judaico estão representados: o Shofar (chifre de carneiro), que era tocado nas cerimónias do Templo, no Dia de Ano Novo (Rosh Hashana) e no Dia do Perdão (Yom Kippur), o Etrong (limão), um símbolo da fertilidade, já que a sua árvore produz fruto durante todo o ano, por outro lado, por ter bom sabor e bom cheiro, representa a pessoa com boa sabedoria e boas acções, e o Luvav (palma), um símbolo da vitória.
O III Concílio de Toledo (realizado em 589 e presidido por S. Leandro de Sevilha), marcou a primeira grande perseguição, a primeira fase de intolerância dos cristãos, quer em relação aos judeus, quer aos próprios cristãos heréticos, como os arianos.
Já antes, Severo, bispo de Maiorca, em carta datada de 418, nos fornece um importante relato da conversão forçada a que foram obrigados os judeus da Menorca. Entre muitas e sanguinária lutas que então ocorreram, como súmula final, Severo assegura ter ganho quinhentas e quarenta almas judias para o seu rebanho.
A consolidação de um espaço, onde, apesar de tolerados, os judeus não tinham a totalidade dos direitos dos cristãos, dá-se com o primeiro código visigótico, a Lex Romana Visigothorum, promulgada em 506. Este código excluía os judeus dos cargos públicos e proibia os matrimónios mistos. Os judeus eram ainda proibidos de possuir escravos que fossem cristãos, para além de proibidos de construir novas sinagogas.
Pouco depois do referido Concílio de Toledo, Sisebuto lançava uma das mais duras ofensivas contra os judeus. No ano de 612, meses depois de subir ao trono, este monarca promulgava um código em que abolia todas as formas de possível dependência de cristãos em relação aos judeus. Dava, ainda, incentivos para a conversão ao cristianismo, obrigando qualquer filho de judeu ou judia com cristão, a ter uma educação cristã. Ficava totalmente proibida toda a actividade prosélita que tentasse conduzir os conversos à sua religião anterior, o judaísmo, actividade punida com a morte.
Nos séculos seguintes, vários outros monarcas regressam a este espírito persecutório em que o Judeu seria sempre tido como um estranho numa sociedade que não era a sua. Confisco de bens, baptismo forçado, proibição de circulação, serão medidas recorrentes num mundo que, pela luta contra o Islão que, a partir de 711 se impõe, é cada vez mais cristão exclusivista. Numa Europa que se irá confundir com a ideia de “cristandade”, qualquer que fosse a minoria religiosa, ela implicaria, ela faria recair sobre si, as mais funestas consequências dessa sua diferença. No século VI os arianos são dizimados, mais tarde serão os cátaros; a luta contra o sarraceno, o inimigo externo, será uma constante; dentro de muros, nas próprias cidades, havia o inimigo interno, o judeu. Por definição, tudo o que era diferente deveria ser banido.


DA DISPUTA DE TORTOSA ATÉ À EXPULSÃO DE CASTELA E ARAGÃO


A última fase de convívio entre cristãos e judeus na Ibéria caracterizou-se por um aprofundamento das tensões que resultarão no édito de 1492, assinado pelos Reis Católicos.
No ano de 1391, quase cem anos antes dessa data em que, para além da expulsão dos judeus de Castela e de Aragão, também foi conquistado o último reino muçulmano da Península Ibérica, tem início a grande pressão contra os judeus nos vizinhos reinos peninsulares. Nesse ano, a judiaria de Sevilha era atacada e morreriam, como em Lisboa em 1506, cerca de 4.000 judeus. Rapidamente os assaltos se generalizaram e outras cidades se seguiram: Toledo, Burgos, Valência, entre outras.
Em Portugal, pela mesma época, D. João I seguia a restante Europa ao obrigar os Judeus à distinção física: os judeus deviam trazer no exterior das suas vestes uma estrela vermelha de seis pontas do tamanho de um selo régio de cera, sob pena de prisão e perda de roupas. Já antes, por legislação de D. Pedro I, os judeus haviam sido obrigados a viver apartados da restante população, em judiarias, que eram encerradas após o toque das Ave Marias.
Na linha das medidas genericamente lançadas por toda a Europa contra os judeus, durante a crise dinástica, já D. Leonor e o conde de Ourém tinham proibido os judeus de ocupar alguns cargos de destaque, nomeadamente na fazenda e na finança do reino, dando resposta a pedidos dos magistrados da cidade de Lisboa, medida que será também seguida por D. Afonso V.
No auge das lutas que em Portugal decorreram nos anos de 1383-1385, um episódios surge com significativo destaque: a população de Lisboa, seguindo outras iniciativas semelhantes um pouco generalizadas por toda a Península Ibérica, decide entrar pela judiaria, ávida da pilhagem inevitável e, talvez também, movida por algum sentimento anti-castelhano, propiciado pelo facto de algumas figuras de destaque da comunidade judaica estarem ao lado de D. Leonor. Apenas a intervenção do quase-monarca Mestre de Aviz consegue minimizar os estragos. A aproximação do futuro Dom João I às elites judaicas de Lisboa terá um outro ponto alto, quando, pela boca de David Negro, D. João conseguiu anular uma tentativa para o assassinar.
Nos reinos vizinhos, e no seguimento desta fase de crescente intolerância, dá-se a chamada Disputa de Tortosa (1413-1414). O ponto de partida, a causa próxima, é simples e resume-se a uma leitura altamente superficial do que era, quer o judaísmo, quer o cristianismo.
O converso Jerónimo de Santa Fé, ou melhor, o converso Yehoshu`a halorquí, redigiu um conjunto de midrashim que ofereceu, em Agosto de 1412, ao papa Benedito XIII – aliás, o anti-papa Pedro de Luna, possivelmente ele também oriundo de uma família de judeus conversos.
Com base nesse documento de Jerónimo de Santa Fé, o papa lançava uma discussão que pretendia mostrar aos judeus ainda não convencidos a abraçar o cristianismo, que o messianismo de Cristo estava já indicado no Antigo Testamento – a adopção do cristianismo por parte dos judeus seria, no seu entender, natural, se tal lhes fosse convenientemente explicado…
Nesse sentido, no final de Novembro, recebiam as Aljamas de Aragão e da Catalunha ordem para enviar ao papa, na altura em Tortosa, rabis para serem formados, ou melhor, convencidos, da doutrina cristã. Nasciam, desta forma artificial, os conversos, os convertidos do cristianismo que, mais tarde seriam, em grande medida, a causa justificada para a expulsão dos judeus de Castela e de Aragão. A verificação de que, apesar de baptizados, os conversos mantinham, muitas vezes, as antigas práticas judaicas, será um dos principais argumentos para justificar e desejar a instalação da Inquisição.
Ao longo das décadas de quarenta e cinquenta a situação de tensão cresce, sendo os conversos cada vez mais acusados de falsos cristãos. Contudo, até ao final da década de setenta, temos um significativo apaziguar dessas posturas populares.
Na década de oitenta, poucos anos antes da expulsão, uma parte da cobrança de impostos em Castela ainda estava na mão de judeus. Num limbo entre problemas económicos e religiosos, surgem inúmeras querelas entre os juízes nomeados pelos monarcas para averiguar as questões de usura e as comunidades de judeus mais activas nessas práticas.
Os anos oitenta do século quinze foram, religiosamente falando, profundamente dolorosos nos reinos de Castela e Aragão. Por um lado, os meios clericais cristãos tomavam crescente consciência da verdadeira fraude religiosa que tinha sido a onda de conversões (forçadas ou duramente fomentadas), sem qualquer apoio de catecumenato, a Inquisição, autorizada desde 1 de Novembro de 1478, mostrava agora toda a profundidade dos ritos e práticas judaicas daqueles que supostamente eram cristãos.
Como reacção, as populações, que justificavam muitos dos problemas de insalubridade e de saúde pública com esta situação, e as entidades religiosas cada vez mais próximas dos monarcas, pediam um cerco cada vez maior aos falsos conversos e, por impossibilidade da Inquisição julgar os não baptizados, de expulsar os judeus.
O estabelecimento da inquisição dá-se exactamente neste contexto. Os alvos são, não só os conversos, como aqueles judeus que procuravam os conversos e os tentavam convencer a voltar à sua fé antiga. Na década seguinte, muitos são os processos de algumas inquisições contra judeus que praticavam esta forma de proselitismo.
Neste quadro, dá-se a expulsão de 1492. Sabemos que muitos dos judeus dos reinos vizinhos passaram para Portugal: Alexandre Herculano, seguido por diversos autores, diz-nos que um grupo de judeus castelhanos e aragoneses terão vindo a Portugal e negociado, quer a vinda em massa dos judeus espanhóis, quer a instalação, mais cuidada, de um certo número de famílias proeminentes. Terão sido seiscentas as famílias mais ricas a serem abrangidas por esse acordo mais específico, mediante o pagamento da avultada soma de sessenta mil cruzados. Da negociação mais geral, sabemos parte do desfecho, se bem que não se conheçam números exactos.
Tudo leva a crer que terão existido duas, senão mais, modalidades na vinda e na incorporação dos judeus espanhóis. Algumas famílias podem, mesmo, ter usado linhas de fuga, conhecimentos de familiares que tenham vindo para Portugal após 1391 ou depois da Disputa de Tortosa. Outras, mais ligadas ao poder régio quando este solicita o Tribunal do Santo Ofício ao Papado, atribuído a 1 de Novembro de 1478 pelo papa Sisto IV, terão tido tempo – 14 anos – para fazer uma sistemática e bem conseguida deslocação de bens e capitais.
A turba, essa, a de judeus “errantes” que foi obrigada a fugir sem qualquer preparação, terá vindo em 1492 com o aval de D. João II, e apenas com autorização para permanecer por um curto período de tempo. Apesar das muitas vozes contra, o rei português impôs um largo grupo de condições vantajosas para os seus cofres, não perdendo essa oportunidade de negócio e de eventual engrandecimento económico.
Sistematizando a cronística da época, as condições impostas e aceites, foram as seguintes:
- Entrariam por uma das seguintes fronteiras: Olivença, Arronches, Castelo Rodrigo, Bragança e Melgaço;
- Cada um devia pagar oito cruzados (pagos em quatro prestações) excepção para as crianças de peito e algumas profissões manuais (ferreiros, latoeiros, malheiros e armeiros). A este pagamento, no local de entrada, numa das fronteiras indicadas antes, corresponderia uma certidão, um livre trânsito que os autorizava a permanecer em Portugal durante os oito meses seguintes;
- A permanência era, então, de oito meses;
- Quem fosse encontrado para além dos oito meses ou sem a dita certidão seria considerado cativo;
- O monarca obrigava-se a fornecer-lhes navios, no fim dos ditos oito meses, para que pudessem partir para outro destino, mediante o pagamento da respectiva viagem.
O negócio para o monarca português era em tudo vantajoso. Vejamos, listando, as mais valias imediatas:
- Instalação de seiscentas famílias de elite mercantil e económica;
- Correspondente capitação destas (sessenta mil cruzados);
- Encaixe das taxas de fronteira (oito cruzados por cabeça);
- Encaixe do transporte ao fim de oito meses;
- Possível abertura para a permanência de alguns oficiais mecânicos importantes para a indústria nacional.
Como vantagem, em menos de um ano, em oito meses, os judeus menos necessários iriam para outras paragens, minimizando o crescimento das judiarias e o descontentamento social.
Mas, e sem olhar ainda para o desfecho após estes oito meses, o valor de entradas foi muito grande. A população portuguesa, na época, não chegaria a um milhão e meio de pessoas. Neste quadro, e rejeitando fontes que nos apontam números da ordem dos quatrocentos milhares , o que seria quase metade da população nacional, um crescimento de 50%, o que é absurdo, é de ter em conta os autores que nos falam de uma migração a rondar os cem mil. De qualquer forma, trata-se de uma entrada, em curto período de tempo, de quase um décimo da população portuguesa. Numa época de instabilidade social, este valor estaria muito além do que poderia ser absorvido. Mais, tratava-se de uma população como que proscrita, cada vez mais mal vista pela maioria cristã.
Do cômputo geral, Bernaldez (cronista dos Reis Católicos) indica os seguintes valores para este êxodo:


- Benavente para Bragança 3.000
- Zamora para Miranda 30.000
- Cidade Rodrigo para Vilar Formoso 35.000
- Alcântara para Marvão 15.000
- Badajoz para Elvas 10.000
Total: 93.000


Se não temos números certos para estes judeus, muito menos os temos para os vários destinos que lhes foram possíveis nos primeiros anos. Os que embarcaram, nos barcos que o rei colocou à sua disposição, foram para a costa do Norte de África, e sobre o seu destino muito de desgraça haveria de dizer: roubados, maltratados, espancados, violentados, reduzidos à escravidão, de tudo um pouco fizeram os marinheiros portugueses que os deveriam levar em segurança a bom porto, assim como as tropas lusas estacionadas nessas paragens, tal como os marroquinos que os receberam.
A muitos dos que ficaram, a escravidão também deve ter sido o resultado de não terem fugido no prazo estipulado dos referidos oito meses. A muitos foram retiradas as crianças e enviadas para a capitania de S. Tomé, recentemente criada e necessitada de população. Também aqui, as fontes da época são claras na dureza, violência e barbárie dos actos cometidos. Por fim, alguns devem ter escapado a este ímpeto de violência que era legitimado por uma postura geral de perseguição. Mais uma vez, tal como em relação à forma como é negociada a vinda deste judeus para Portugal, o que está em causa não é uma atitude global de ajuda ou de misericórdia, mas simplesmente o uso dos bens e o acolhimento das elites.
No dealbar de quinhentos, pelo menos, 10% da população portuguesa seria judia… convertida à força a ser cristã mas intimamente judia, pronta para vir a ser, trinta anos depois, perseguida pela inquisição.
D. Manuel, na tentativa de solucionar um grave problema, criava um ainda maior: o judeu escondido obrigado a ser cristão. O drama seriam os dois séculos de perseguição que se seguiram.
Está consolidado o mito de Sefarad.




de Paulo Mendes Pinto


(em Grandes Enigmas da História de Portugal, Vol. I – da pré-história ao século XV, da Editora Ésquilo)