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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Canções de embalar




Uma linguagem de afecto




Durme, durme, aguarela



 Um destes dias, ouvindo uma canção de embalar sefardita – “Durme, Durme” -, veio-me à memória que o Carlos a tinha publicado aqui no blogue. Foi o ano passado, precisamente em 5 de Agosto de 2012. A canção é lindíssima e a interpretação de Catarina Moura e do Grupo Musical “Brigada Victor Jara”, proporciona-mos um momento de verdadeiro prazer. 


Durme, kerido hijico,/Durme sin ansia y dolor.
Cerra tus lindos ojicos,/Durme, durme com savor






Ouvir esta canção, fez-me lembrar outras e pensar que todos nós, na nossa infância, fomos embalados ao som de uma certa canção de embalar. Tomei então a liberdade de escrever um pouco sobre o assunto. 

Não sou especialista em nenhuma área da Musicologia, e também não sei nada em particular sobre canções de embalar. Mas sei aquilo que todos sabem… que a canção de embalar, presente em todas as comunidades humanas, transmite afecto e ternura à criança. 





Mãe e Filho, William Adolphe Bouguereau, 1825-1905



A criança ao ser embalada adormece num sono reparador e tranquilo, reconhecendo na voz da mãe, do pai ou da avó, uma presença que a ajuda a enfrentar o mundo exterior, onde tudo é novo e pode meter medo. Na intimidade do momento, a música e a palavra são como um vínculo de amor. Neste ritual de afecto estabelece-se um diálogo, que com o tempo se há-de converter em vivências e culturas de uma memória colectiva. 





Mordechai Gebirtig (2º a contar da esquerda, em cima) com a família (as três filhas estão em baixo, à frente)



   Propomos agora a audição de uma berceuse yiddish – Shlof Schoin main Jankele -, com música e letra de Mordechai Gebirtig (1877-1942), músico e poeta de Cracóvia, e um dos nomes mais importantes ligados à canção popular yiddish.
    
Mordechai Gebirtig dedicou os poemas às suas três filhas, criando para eles melodias que improvisava numa flauta pastoril. Em 1942, Gebirtig foi assassinado pelos nazis quando se recusou a obedecer a uma ordem de deportação. A mulher e as filhas pereceram em campos de concentração.



Schlof sche mir schoyn Jankele mayn scheyner,
Di Eygelach di schwastinke mach tsu.
A Jingele wos hot schoyn ale Tseynddelech,
Muss noch di Mame singen “ay lu lu”.
(…)
Dorme, dorme, Yankele, meu belo filho.
Fecha os teus pequenos olhos pretos.
Meu pequenino, agora que já tens os dentinhos todos,
Queres que a mamã te cante “ay lu lu”.
(…)





Schlof Schoyn main Jenkele” – interpretação de Yaacov Shapiro



    Da Polónia vamos dar um salto à África do Norte, para ouvirmos uma berceuse amazigh de Agadir. Os Imazighen, ou seja, “homens livres”, são um conjunto de povos nómadas a que chamamos berberes; falam línguas berberes, e estão espalhados principalmente na Argélia e em Marrocos, com menos representatividade na Líbia, ou na Tunísia. 





Menina amazigh, da Líbia



Canção de Embalar Amazigh


Encontrei o meu irmão mais velho,/o sono, que me perguntou:
o que levas nos braços?/E eu respondi-lhe: a Lua.

A Lua está muito triste/e eu perguntei-lhe: onde está a alegria?
E ela respondeu:/a alegria está na casa de outros.

(…)
Encontrei o sono/e ele perguntou o que levava nos braços.
Eu respondi-lhe: é só a Lua,/e ele disse-me:/embala-a, embala-a.







Berceuse Tradicional Amazigh - interpretação de Monserrat Figueras





Pausa Forçada, Alves Cardoso, 1913



    Desta feita, escolhemos uma canção de embalar de Trás-os-Montes. Com uma candura maravilhosa, diz assim: 



“Ó, Ó, MENINO, Ó”

Ó, menino, ó/Ó, ó, ó,/Teu pai foi ao eiró,
Cuma vara de aguilhão,/Pra matar o perdigão.
Ó, ó, ó, ó,/ó, menino, ó/Teu pai foi ao eiró,
Tua mãe é borboleta/Logo te vem dar a teta.





Ó menino ó (Trás-os-Montes) – Brigada Victor Jara




           A última canção dispensa apresentações. É a “Canção de Embalar” de José Afonso. 





Dorme meu menino a estrela d’alva/
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada

Outra que eu souber será pra ti
Ô.ô.ô.ô.ô.ô.ô.ô.ô}bis
(…)






Zeca Afonso – “Canção de Embalar”




(Enviado pela amiga Sónia Craveiro à qual desde já agradeço o envio deste magnifico artigo).




Fontes:


FIGUERAS, Monserrat, Ninna Nanna, ALIAVOX
GRAÇA, Fernando Lopes, A Canção Popular Portuguesa, Edições Europa-América


Memórias...








Imagens retiradas das seguintes fontes:


Turismo da Serra da Estrela
Teo Dias (ruas da minha terra)
Rita Branco (oportoencanta.com)
Ricardo Frade (Notícias de Castelo de Vide)
Carmen Balesteros
Teresa Nunes
Cátedra Alberto Benveniste
Rede de Judiarias de Portugal
Junta de Freguesia de São Miguel - Lisboa
Planeta Algarve (jornal online)
Rua da Judiaria
Ladina.blogspot.pt
Rafael Baptista
Manuela Videira
Carlos Batptista



domingo, 29 de setembro de 2013

A frase da semana







"A pintura é para mim cada vez mais uma actividade jubilatória".


Júlio Pomar



Efeméride




29 de Setembro de 1941


Dá-se início ao massacre de judeus na ravina de Babi Yar, próximo de Kiev, Ucrânia.
Elementos do Einsatzgruppen bem como membros das S.S., da polizei e auxiliares ucranianos, levam a cabo o assassinato de milhares de judeus, principalmente mulheres e crianças, mas também de ciganos, militantes comunistas e prisioneiros de guerra soviéticos, naquele que é ainda hoje considerado como um dos maiores massacres em massa durante a II Guerra Mundial.
Segundo o relatório (quase sempre muito específico, típico da mentalidade germânica), elaborado pelo próprio Einsatzgruppe para a sede de comando, 33.771 judeus foram mortos a tiro. Quase 100 000 pessoas foram assassinadas entre os dias 29 e 30 de Setembro na ravina de Babi Yar.













quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Assim disse ele









"(...) Chateadíssimo de viver sozinho, resolvi recolher a um lar da terceira-idade. Calcula-se o que é. Antros de horror, para onde os velhos são atirados porque aborrecem ou incomodam em casa da família, dos filhos. Não sei ao certo de onde veio esta moda, mas calculo. E veio para ficar. Normas comunitárias, subsídios que transformam idosos incapazes em rendosa matéria-prima; despojos humanos vampirizados por gente sem escrúpulos nenhuns e gulosa dos apoios oficiais, apenas. Lares? Meros depósitos de pré-cadáveres. Pobre gente no derradeiro patamar da vida, apoquentada pela idade avançada, a insânia do caruncho, a doença, a invalidez física.”



Luíz Pacheco



quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Seminário Turismo Hebraico









Seminário Turismo Hebraico
Oportunidades em torno do legado histórico judeu aragonês


Zaragoza, de 23 a 24 de Novembro de 2013.


Programa de Sábado, 23 de Novembro - 09h30  - Recepção dos participantes e entrega de material.

10h00: Bem-vindo.

10h30: "Introdução ao judaísmo e a cultura judaica a empresários não-judeus", por Andreu Lascorz.

11h30: Pausa.

12h00: "A dimensão do mercado de turismo em Israel e as comunidades judaicas, como espaço de emissão", por Andreu Lascorz.

Noite 

 16h00: "Gestão de património e economia da cultura", por Fernando Quiles.

17h00: "Paisagem cultural da herança judaica, o caso da Andaluzia", por Jaime Moreno Tamarán.

18h00: Pausa 

 18h15: Workshop: "Gestão de projectos em relação ao legado judaico", por Fernando Quiles e Jaime Moreno Tamarán.

19h45: Pausa 

 20h00: Mesa redonda, "As oportunidades de negócios - legado judaico aragonês" .




Via: EndreZar, Patrimonio Cultural



terça-feira, 24 de setembro de 2013

Em memória de António Ramos Rosa (1924 - 2013)








(Imagem retirada do blogue - feldecao)




A Mulher



Se é clara a luz desta vermelha margem 
é porque dela se ergue uma figura nua 
e o silêncio é recente e todavia antigo 
enquanto se penteia na sombra da folhagem. 
Que longe é ver tão perto o centro da frescura 

e as linhas calmas e as brisas sossegadas! 
O que ela pensa é só vagar, um ser só espaço 
que no umbigo principia e fulge em transparência. 
Numa deriva imóvel, o seu hálito é o tempo 
que em espiral circula ao ritmo da origem. 

Ela é a amante que concebe o ser no seu ouvido, na corola 
do vento. Osmose branca, embriaguez vertiginosa. 
O seu sorriso é a distância fluída, a subtileza do ar. 
Quase dorme no suave clamor e se dissipa 
e nasce do esquecimento como um sopro indivisível. 



António Ramos Rosa, in "Volante Verde".



Outono em Sefarad





De 27 de Setembro a 6 de Outubro

de 2013.






Mais informação em: turismo@ayuncordoba.es



Fonte: Córdoba Judaica



segunda-feira, 23 de setembro de 2013

"A velha anedota", cartoon de Henrique Monteiro






Antigo bairro judeu em Ribadavia - Galiza




A história mostra que entre os séculos XII e XIII começaram a chegar os primeiros judeus a Ribadavia devido a importância que a cidade começou a ter nessa época. Muitos judeus se instalaram na cidade para tratar da gestão de assuntos financeiros do Condado de Ribadavia (especialmente da administração de bens e rendas), além do artesanato.



Antigo bairro judeu




Quando os Reis Católicos promulgaram a ordem de expulsão dos judeus em 1492, alguns foram embora da cidade enquanto outros decidiram se converter ao catolicismo. No entanto, muitos dos convertidos mantiveram suas crenças e ritos de forma clandestina.



Rua Jerusalém em plena judiaria





Ruela da judiaria





Fotos de José Luiz Gonzalez


Via:  viveraviagem.com


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Shabat Shalom









(Pintura de Devorah Weinberg)




"A Toca do Judeu"









Para os lados de Góis, já em direcção à Pampilhosa da Serra, o viajante passa por uma localidade de nome Cabeçadas, ali, existe um pequeno bar chamado "Toca do Judeu". 
Ao que parece, o seu  proprietário faz parte de uma numerosa família, curiosamente, todos designados de "judeus" pelo seu excelente jeito para o comércio.


Alcunha, porque a sua inclinação natural para o negócio parece ser a razão principal deste epíteto, ou então, algo relacionado com as suas raízes familiares. De uma maneira ou de outra, não deixa de ser pitoresco o episódio aqui relatado. 







(Imagem retirada de semordem.blogspot.com)



Via: opalanegra.blogs.sapo.pt



quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Actividades culturais - Espanha








Dia 28 de Setembro. Visita guiada ao bairro judeu de Ávila. Local de saída a ser determinado, 12h00.





(Imagem - Turismo de Toledo)


  Dia 29. Visita ao bairro judeu de Toledo. Local de saída a ser determinado, 11h00. Visita guiada às comunidades judaicas de Espanha e ao cemitério judaico de Avila. 12h.



(Carta de Sefarad)



Sucot







Sucot é uma festa caracterizada principalmente pela obrigação do povo judeu em habitar nas cabanas durante estes próximos dias. A sucá lembra as tendas (ou as nuvens celestiais), que serviram como habitação para os hebreus durante os 40 anos, quando estes viveram no deserto do Sinai, após a sua saída do Egipto.


No que me diz respeito, já tenho
 a minha sucá terminada.


Chag Sucot Sameach !!!




terça-feira, 17 de setembro de 2013

"O início da escalada", cartoon de Henrique Monteiro







Um olhar por Belmonte




Conjunto de fotos TIRADAS durante uma breve visita a esta vila. 


(rosh hashanah 5774)
  





Café shalom




Castelo




Marcas cruciformes







Sinagoga beit eliahu









fotografias de rafael e Carlos baptista

(2013)



segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A frase da semana







"O humor reforça o nosso instinto de sobrevivência e salvaguarda a nossa saúde mental".


Charles Chaplin


Balão de oxigénio







O ditador sírio Bashar al-Assad acabou de receber inesperadamente um balão de oxigénio, que já não esperaria.



O Alma-Grande, de Torga




O escritor Miguel Torga, de seu nome verdadeiro Adolfo Correia da Rocha, nascido em Trás-os-Montes (distrito de Vila Real), soube na sua obra literária captar o espírito de um povo rural. Seus anseios, angústias e costumes de um Portugal fechado em si mesmo, caracterizado ainda pelo seu conservadorismo e atraso.

Torga conheceu bem o ambiente vivido nessa região portuguesa, não deixando de retratar os descendentes do rei David que ainda por lá habitavam, levando uma vida dupla, entranhados em segredos e envoltos em tradições estranhas para a restante população. 

Alma Grande é um desses exemplos.







(Desenho de Egon K)




Riba Dal é terra de judeus. Baldadamente, pelo ano fora, o Padre João benze, perdoa, baptiza e ensina o catecismo por perguntas e respostas. – Quem é Deus? – É um Ser todo poderoso, criador do Céu e da Terra. Na destreza com que se desenvencilham do interrogatório, não há quem possa desconfiar que por detrás da sagrada cartilha está plantado em sangue o Pentateuco. Mas está. E à hora da morte, quando a um homem tanto lhe importa a Tora como os Evangelhos, antes que o abade venha dar os últimos retoques à pureza da ovelha, e receba da língua moribunda e cobarde a confissão daquele segredo – abafador. Desses servos de Moisés, encarregados de abreviar as penas deste mundo e salvar a honra do convento, o maior de que há memória é o Alma-Grande. Alto, mal encarado, de nariz adunco, vivia no destelhado, uma rua onde mora ainda o vento galego, a assobiar sem descanso o ano inteiro. Quem vinha chamar aquele pai da morte já sabia que tinha de subir pela encosta acima a lutar como um barco num mar encapelado. – Raios partam o vento! Mas quê! Do mesmo modo que o Alma-Grande era certo na casa da esquina, sempre ao borralho, era certo o bafo da Sanábria a varrer a ladeira. Diante da casa, bastava gritar-lhe o nome. – Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande! – Lá vai… Daí a nada a tenaz das suas mãos e o peso do seu joelho passavam guia ao moribundo. Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há três dias, na sala, esperava impaciente o último alento do agonizante, metia-se pelo quarto dentro, fechava a porta, e pouco depois saía com uma paz no rosto pelo menos igual à que tinha deixado ao morto. Os de fora olhavam-no ao mesmo tempo com terror e gratidão. Às vezes, uma voz ou outra, depois do pesadelo, levantava-se do fundo da consciência e protestava; mas no dia seguinte acontecia ser essa mesma voz que no alto do Destelhado, sobrepondo-se à força do vento, o reclamava. – Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande! – Lá vai… E aparecia à porta logo a seguir. Quando a hora do Isaac chegou, foi um filho, o Abel, que trepou a ladeira. O garoto vinha excitado, do movimento desusado de casa, da maneira estranha como a mãe o mandara chamar o Tio Alma-Grande, e da ventania. – Que tem o teu pai, rapaz? O pequeno olhou fixamente a cara seca do abafador. – Febre… – Bem, vamos então lá… – E que é que o Tio Alma-Grande lhe vai fazer? – Vê-lo… Pela rua abaixo só o vento falava. Rouco de tanto bradar, monocórdico, persistente, era nele que tinha expressão a intimidade de ambos: um, o pequeno, nervoso, inquieto, a braços com pressentimentos confusos, que se recusavam a sair-lhe do pensamento; o outro, o velho, a aceitar aquele destino de abreviar a morte como um rio aceita o seu movimento. Em casa havia lágrimas desde a soleira da porta. Mas a entrada do Alma-Grande secou tudo. Atrás dos seus passos lentos e pesados pelo corredor ficava uma angústia calada, com a respiração suspensa. – O que é que ele lhe vai fazer? – perguntou de novo o Abel, agora à mãe, quando a porta do quarto se fechou. A Lia respondeu ao filho com duas lágrimas silenciosas pela cara abaixo. Lá dentro, colado à cama que a transpiração alagava, o Isaac parecia ter chegado ao fim. Branco, com dois olhos perdidos no fundo da cara, opresso, como que só esperava a ordem de largar a vela. Tinha adoecido havia quinze dias. Um febrão tal que o Dr. Samuel desanimou. Veio, tornou a vir, e acabou por aconselhar que tratassem do caixão. Mas o Isaac era cedro do Líbano, rijo, no cerne. Depois desse desengano ainda o mal o roeu seis dias sem o comer. E sempre de olhinho vivo. Gemia, gemia, finava-se, mas com aquelas duas contas de azeviche a reluzir. Acabou, contudo, por lhe pousar no rosto uma sombra estranha; e a mulher, a Lia, abriu mão da esperança. Dois dias mais, e como na sala a D. Rosa lembrasse a confissãozinha, um irmão do Isaac, o Daniel, chegou-se à cunhada e deixou cair, entre duas palavras de consolo, o nome do Alma-Grande. A Lia, a princípio, reagiu quanto pôde. Mas a perspectiva do padre João a entrar-lhe pela casa dentro venceu-a. Mal rompeu a manhã, com uma voz que fez medo ao filho, mandou-o chamar o abafador. Quando o Alma-Grande entrou, o Isaac estava no auge de um combate que quase sempre se trava de corpo estendido. O inimigo era uma parte de si mesmo apostada em perdê-lo. E a outra metade, um pedaço de ser nobre e agradecido à seiva, corajosamente defendia o resto da muralha. As bagadas pelas têmporas abaixo e um ritmo apressado da respiração davam sinal desta guerra. Mas de nada mais precisava, quem olhasse com limpos olhos humanos, para sentir a grandeza e a solenidade de tal hora. Por desgraça, o Alma-Grande não podia ver aquilo. Insensível à profundidade dos mistérios da vida, sem o estremecimento de uma fibra sequer, avançou para o leito num automatismo rotineiro. O seu papel não era olhar; era ir inteiro com as mãos ao pescoço, com o joelho à arca do peito, e retirar-se uns minutos depois, como um instrumento que tivesse cumprido correctamente a sua função. No seu castelo o Isaac pelejava sempre. O fole pressuroso do arcaboiço metia ar na fornalha; espesso, cálido, activo, o suor ia brotando do vulcão. 






O abafador, segundo o projecto da Husma, numa colaboração com o Teatro de Marionetas do Porto.




A casa dir-se-ia um sepulcro habitado por vivos petrificados e mudos. Só no quarto havia movimento e palpitação.Calado, o Alma-Grande avançou. Mas quando de mãos abertas e joelho dobrado ia a cair sobre o Isaac, fê-lo parar uma voz diferente de todas as que ouvira em momentos iguais, que parecia vir do outro mundo, e dizia: – Não… Ainda não… Ainda não… Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo, gritos de desespero, apelos sôfregos e angustiados, sem se deter na sua missão sagrada! Quantas vezes! Desta, porém, o apelo e os gemidos soavam-lhe nos ouvidos doutra maneira.– Não… Não… Ainda não… Um pano escuro que até ali vendara os olhos do Alma-Grande queria rasgar-se de cima a baixo. E o abafador, paralisado entre as trevas do hábito e a luz que rompia, lembrava uma torrente subitamente sem destino. – Não… Ainda não… Ainda não… Era terrível o que se passava. À luta que o Isaac sustentava contra forças que nunca ao certo se conheceram, juntava-se o embate dos dois homens, um a saber que ia matar, outro a saber que ia ser morto. Estiveram assim algum tempo, de olhos cravados um no outro, a medir-se. Pesado, o suor escorria pela cara do Isaac; quente, o sangue martelava nas têmporas do Alma-Grande. Foi o ruído súbito e em guincho de uma porta que fez explodir aquela concentração. O barulho a ouvir-se, e o Alma-Grande, como um peso suspenso e de repente liberto, a cair em cima do moribundo. Nem uma palavra só. Apenas um baque surdo, e as mãos sôfregas do agressor à procura do pescoço do lsaac. Mas a porta que rangera dera entrada a alguém. A um vulto que o Alma-Grande adivinhava atrás das costas, parado, lívido, a tentar compreender. Um esforço supremo do Isaac para se livrar das garras que o apertavam e a presença atónita do Abel, tiraram às mãos e ao joelho do Alma-Grande a força habitual. Bem que se extremara nele o assassino, o animal que bebia a grossos tragos o fio de vida que encontrava no caminho! Bem que se lhe avivava na consciência a certeza de que era matar a razão do seu destino! Em vão. O puro instinto não tinha coragem para empurrar aquelas mãos e aquele joelho diante de uma testemunha. Ergueu-se. Com o rosto coberto por um pano de lividez igual à do agonizante, voltou-se. E sem coragem para encarar os arregalados e aflitos olhos do pequeno, que o varavam, silenciosamente, saiu. Atravessou a sala cabisbaixo, longe da majestade trágica das outras vezes. Deixava atrás de si a vida, e a vida não lhe dava grandeza. Quando, um segundo depois, a Lia, como um bicho culpado, entrou no quarto, o filho estava sentado na cama, com a pequena mão na testa do pai. A criança debatia-se num agitado mar de brumas; mas o seu coração ditava-lhe a mãozita ali, na fronte escaldante do que lhe dera o ser, do mesmo modo que lhe ordenara já a entrada sorrateira e inquieta no quarto. E foi talvez o gesto inocente e filial que fez correr novamente nas veias do Isaac o sangue da confiança. Sem confissão, vinte dias depois comia o caldo ao lume como se nada tivesse sido. E nada tinha sido realmente para toda a gente da terra, menos para ele, para o pequeno e para o Alma-Grande. Os outros passaram da agonia à morte e da morte à ressurreição, na inconsciência de quem passa do calor ao frio e do frio novamente ao calor. Só os três sabiam, de maneiras diversas, que o drama fora mais negro e profundo. O Isaac vira as garras da morte ao natural; o Alma-Grande olhara pela primeira vez a escuridão do seu poço; o garoto, esse, pressentira coisas que não podia clarificar ainda no pensamento. Vagaroso, o tempo foi deslizando; e com ele apagara-se já de todo na lembrança da terra a doença do Isaac. Missa e Sabath. Os três, porém, debruçavam-se sem descanso sobre o lago onde se reflectia a imagem negra do passado. O Isaac, cada vez mais dorido, olhava, olhava, e via a vingança; o Alma-Grande, cada vez mais culpado, olhava, olhava, e via o medo; o pequeno, inocente, via apenas a angústia de não entender. E os três formavam como que uma ilha de desespero no mar calmo da povoação. Não se falavam, fora do filho a pedir bênção ao pai, do pai a dar-lha, e de uma saudação ambígua e monossilábica do Alma-Grande ao passar pelo Isaac. Mas traziam-se guardados uns aos outros, como se nenhum deles quisesse perder a hora em que, para a eternidade, varressem do céu das consciências a nuvem pesada que o toldava. E esse momento, finalmente, chegou. Vinha o Alma-Grande de ver a filha e os netos, em Bobadela, quando o Isaac, que o seguia como um cão de fila, lhe saltou à estrada. Testemunhas, só Deus e o Abel, que, sem o pai suspeitar, o acompanhava também por toda a parte, e olhava a cena escondido atrás de um fragão. – Não matarás… Assim era no Evangelho. Fora dele, numa lei diferente, a moral tinha outros caminhos, como o próprio Alma-Grande sabia. – Não matarás… O Isaac, porém, olhava o Alma-Grande com os mesmos olhos implacáveis que lhe vira nas horas de agonia. – Não… Não… Mas o Isaac era o mais novo e o mais forte. E, quando o Alma-Grande foi a dar conta, estrebuchava no chão, de costas, com o pescoço apertado nas mãos do outro, e com a tábua do coração sob o peso infinito de um joelho. – Não… Não… O pequeno, do penedo, via a cara congestionada do Alma-Grande, e ouvia o esforço da respiração a forçar o garrote. – Não… Possantes, inexoráveis, as tenazes iam apertando sempre. E, com mais um estertor apenas, estavam em paz os três. O Isaac tinha a sua vingança, o Alma-Grande já não sentia medo, e a criança compreendera, afinal. 




  de Miguel Torga



Novos Contos da Montanha. Coimbra [Edição do Autor], 7ª ed., 1977, p. 15-24.