Os mais insignes judeus transmontanos (Parte I)
Devido a ser um texto logo mas de grande interesse, reparti o mesmo em duas partes. Ainda esta semana será publicado a segunda e última parte do artigo do professor Adriano Rodrigues.
Trás-os-Montes, Beira Alta, Beira Baixa e Alentejo foram as áreas do território  nacional mais povoadas pelos judeus e também áreas da sua dispersão  interna, orientada, preferentemente, para povoações portuárias do  litoral.
Ao longo da Idade Média, as terras portuguesas junto à fronteira acolheram os hebreus  fugidos de Leão e Castela e também dos Almorávidas e dos Almóadas  (1086-1248).
Nos  alvores da Idade Moderna os expulsos da Espanha recém-unificada pelo  Reis Católicos, acolheram-se, principalmente, nas zonas raianas  portuguesas
Das províncias citadas, uma se distingue pelo condicionalismo geográfico,  acentuado pelo aspérrimo e fragoso recorte do profundo vale do Douro,  pela vigilante, arredondada e impávida Serra do Marão e pela fronteira,  outrora hostil, cerrada e cintada, contornando de Norte para Nordeste o  território nacional. Essa província, Trás-os-Montes, foi a nova Terra da Promissão dos Hebreus. A região de Bragança pela ondulação dos seus montes e o atractivo dos  vales, lembra a Galileia. Desde os alvores da nacionalidade portuguesa  atraiu os Judeus.
D.  Afonso Henriques e seu filho D. Sancho, não só procuraram alargar o  território mas consolidá-lo pelo povoamento. Se o filho se distinguiu  nesta tarefa mais do que o pai, o Rei Conquistador iniciou-a, recorrendo a cristãos de Além-Pireneus e também aos vencidos serracenos, mouros  forros livres, os mudéjares. Serviu-se ainda das pueblas judias, isto é, de aldeamentos hebraicos. Temos testemunhos em Trás-os-Montes e na Beira, onde persiste o topónimo Jueus.
Tal como faziam os mouros e os cristãos, também os Hebreus se dedicavam à  agricultura, indispensável à sobrevivência da sociedade medieval. O Rei  Conquistador integrou judeus no seu exército.
O Rei Lavrador aproveitou a capacidade agrícola da "Gente de Nação", em terras de Bragança, ordenando por carta-régia que ali adquirissem  3500 maravedíadas de terra, das quais, uma área de 2000 reservadas a  vinha; outra de 1000, para cultivo e uma de 500 para habitação. O custo  de 600 maravedies seria pago ao Rei, em Agosto, no dia de Santa Maria.
D. Dinis concluiu essa carta ordenando que não fizessem mal aos Judeus e os ajudassem.
Tempos  depois, chegavam às terras bragançanas israelitas, fugidos da ira de  Henrique de Transtâmara, que matara o seu meio-irmão, o legitimo Rei D.  Pedro I, de Castela. Estes judeus tinham apoiado financeiramente a  guerra sustentada pelo legítimo Rei, D. Pedro contra o usurpador. A  partir dai, a actividade agrícola tornou-se secundária para os  israelitas, dada a entrada de mercadores, artesãos e profissionais  livres. O desapego das terras e de bens imóveis facilitava-lhes a  deslocação em períodos de crise.
Mas a  agricultura estava enraizada na tradição bíblica e talmúdica, desde a  sua sedentarização na Terra Santa, sendo origem de cerimónias do culto e de solenidades. O calendário litúrgico calculou-se de acordo com o  tempo agrícola. As leis agrárias estão profundamente impregnadas de  religiosidade, obedecendo a exploração a normas e a restrições.  Admite-se o ano (shemitá), ou ano sabático, um período de sete anos em que as terras descansam. As colheitas dos 3 primeiros anos ficam  condicionadas. Respeitam-se as primícias, (bikurim).
As leis  agrárias privilegiam Deus, a quem tudo se deve, mas não esquecem os  pobres nem as aves, deixando alguns frutos para os rebusqueiros.
Os reis  da primeira dinastia foram soberanos das três religiões: Judaica,  Cristã, Muçulmana, reconhecendo um só Deus. Estes soberanos recorreram a conselheiros financeiros hebraicos. D. Afonso Henriques apoiou-se em D. Jahiá Aben Aich, de uma família de ricos agricultores.
D. Dinis teve como Arrabi-Mor, D. Judah, a quem sucedeu o filho, D. Guedelha  Aben-Judah. Os Judeus tinham sobre os cristão a vantagem de saber operar rapidamente, pois os cristãos eram extremamente lentos e limitados,  recorrendo ao ábaco e aos algarismos romanos. Os hebreus usavam os  algarismos árabes e também os seus. Tentem fazer uma multiplicação com  algarismo romanos…
O primeiro educador é o pai, como chefe de família. Assim o refere o Deuteronômio, (Devarim) (6.7).
Os  rapazes devem estudar a Torah, a partir dos 6, 7 anos. O pai ensina aos  filhos as bases do seu futuro modo de viver. 
As comunidades hebraicas sefarditas tinham salas de estudo para o ensino básico. Os melhores alunos prosseguiam com a aprendizagem religiosa e profana, na Yeshiva, uma academia a privilegiava o ensino da Bíblia. Se havia possibilidades financeiras, prosseguiam nas Universidades.
Naturalmente, a evolução tornou hoje o condicionalismo diferente mas não invalidou a  responsabilidade da base da educação pertencer à família. Esta tradição  manteve-se com os conversos e os cristão-novos.
Para  melhor compreensão do que vamos dizer é necessário esclarecer o conceito de cristãos-novos, designação atribuída em Portugal aos convertidos,  obrigados pelas circunstancias ao baptismo.
O  cristão-novo é um fruto da violência e uma negação da nobreza ecuménica  cristã, descriminando e segregando os convertidos ao catolicismo.
Em  Espanha, os conversos usavam de todos os direitos. Em Portugal  tornaram-se cidadãos de segunda classe, constituindo uma aberração no  seio da cristandade, discriminados nos direitos religiosos e nos civis,  pois o Estado e a Igreja identificavam-se. Para a hierarquia Católica,  as conversões equivaliam a desconfiança, daí as recusas. Esta suspeição  motivou muitos cristãos-novos a deixarem o pais e a regressarem à fé dos seus antepassados. Foi também origem de perseguições injustas da  Inquisição a conversos católicos convictos. Se persistiam rituais  hebraicos isto se devia à deficiente e medíocre evangelização.  Aproveito, a este propósito, um documento flamengo relatando que em dado momento do século XVI chegou à Flandres um grupo de portugueses.  Olhados como suspeitos de serem Judeus as autoridades interrogaram-nos  em tribunais da Zelândia. Confirmaram que eram cristãos e os filhos  baptizados. Todos sabiam o Pater e a Ave, mas ninguém  compreendia uma palavra do que dizia. Interrogados sobre a vida de  Cristo, todos disseram que nascera em Belém, mas ignoravam se ficava na  Terra ou no Céu…
Esta  situação foi comentada numa carta escrita por Pierre de Brel dizendo que todos em Portugal, mesmo os melhores cristãos, clérigos, desconheciam  os artigos da fé e padres e curas instruíam mal os fieis, pelo que, se  acabasse a perseguição aos judeus, esta pobre gente seria mais para  lamentar do que para punir.
E concluiu:
Eles, lá em baixo, (na Península) não percebem que la religión n’est pás dans le genou mais dans le coeur.
A  conversão forçada foi um acto repugnável. Não admira que levasse à  simulação. Dada a gravidade das circunstâncias, a conversão aparente dos Hebreus não significada traição da sua própria fé. A Lei Judaica podia  ser interpretada no sentido de que a preservação da vida tinha  precedência sobre os preceitos religiosos. Fundamentavam-se no Kol-nidre, a expressão aramaica do início do texto referente à anulação dos votos.
Quando a Igreja impôs o baptismo aos Judeus, muitos terão recorrido ao texto do  Kol nidrei para anular o acto desvinculando-se do juramento.
O medo  da Inquisição levou os conversos à fuga de Portugal. A oportunidade não  se ofereceu na altura na conversão forçada mas mais tarde, durante a  união das duas coroas, no período Filipino. O vasto Império espanhol  reunido sobre a égide dos Habsburgos, ligando a Áustria à Espanha, às  Ilhas do Mediterrâneo, a parte da Itália, Países Baixos, Franco Condado, integrando Portugal e um vastíssimo Império Ultramarino, tão vasto, que o sol não se ocultava no reino de Filipe II. Este larguíssimo espaço  oferecia possibilidades de fuga.
O Exército espanhol constituído por tércios, movimentava-se através deste extenso mundo por um corredor militar que unia os domínios da Espanha, conhecido por El Camino Español. A Tropa necessitava de alimentos, principalmente cereais, conhecidos por pão do Mar, pois chegava de barco dos países do norte, ou do Mediterrâneo, mercadejado  com muçulmanos, especialmente turcos. E quem eram os intermediários? Os cristãos-novos, através de uma rede de mercadores Judeus. Por vezes, faziam circular os produtos, abastecendo ambos os contendores, como por exemplo no caso da luta entre Espanhóis e Holandeses.
O  Exército espanhol recorria a apoios civis, não só para suprimento  alimentar mas também recrutando médicos, cirurgiões, boticários e outros auxiliares.
Os cristãos-novos ganhavam a confiança dos Tércios, acompanhando-os e, quando as circunstâncias se tornavam propicias, davam o salto. Algumas cidades da Itália eram particularmente favoráveis, entre elas Livorno, (Livorna). Ainda hoje, no distrito de Bragança, em Felgar, persiste o  ditado: Quem vai a Livorna, vai e não torna!
Dali, passavam para o Império turco.
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Tem-se  escrito muito sobre as perseguições aos Judeus, o papel da Inquisição e o comportamento dos reis de Espanha e dos de Portugal. O problema é  complexo e vejo-o como reflexo de uma confrontação de duas forças, que  habitualmente escapam aos historiadores, ocupados com a sequência  factorológica do processo histórico.
Essas  duas forças debatem-se amplamente, marcando a transição da Europa  Medieval e do Renascimento, para a Europa da Idade Moderna. Uma é  representada pelos partidários da Ordem Tradicional; a outra, pelos da Ordem Moderna, ou Ordem Nova. O Renascimento, ocorre no final da Idade Média e, apesar de se procurar o retorno a ideais greco-latinos persiste a tradição medieva da Respublica Christiana.
As  guerras de religião são um aspecto desse conflito e a Inquisição, uma  arma mais violenta do que as armas de fogo, que então foram inventadas.
A Ordem  Tradicional foi sustentada pelo Império Romano-Germânico, agrupando os  apoiantes da Casa de Áustria e dos Habsburgos, atingindo o apogeu com  Filipe II de Espanha. O desejo de domínio está patente nas legendas das  baixelas do Palácio Imperial, onde se lia A.E.I.O.U., significando em  Latim: Áustria est imperare omnia universus! Significa: Que a Áustria impere sobre todo o Universo.
Esta Ordem defendia uma Europa vertical, hierarquizada, obedecendo ao Papa e ao Imperador. A Ordem Moderna, recebendo implicitamente o apoio católico do Cardeal Richelieu, inimigo dos  Áustrias, pretendia uma nova ordem, gerida pelos ideais Renascentistas.
Os  Judeus foram apanhados no meio da confrontação pela ortodoxia católica e espanhola, seguida da portuguesa, esta algumas vezes mais fanática do  que aquela, usando a Inquisição.
O declinio deste poder começou com Filipe IV de Espanha e III de Portugal.
Os Tércios, agrupamentos militares terríveis, foram derrotados na Guerra do 30 Anos (1618-1648), sendo a Espanha obrigada a assinar o Tratado de Westfalia, de profundas consequências. A Espanha foi também vencida pela França,  que lhe impôs, em 1659, o Tratado dos Pirenéus, excluindo Portugal, que  teve de continuar a lutar pela independência. Mas em 1668, os  portugueses venciam a Espanha. Foi assinado o Tratado de Lisboa.  Infelizmente, não acabou a Inquisição. Os seus meandros tinham amarrado  Portugal ao fanatismo religioso e afastado o país da evolução seguida  pelos países protestantes e pela própria França, católica.
O essencial da nova ordem europeia, reconhecido pelo Tratado de Westfalia, levou ao abandono da concepção hierárquica tradicional, baseada na Respublica Christiana e na aceitação da autoridade pontifícia, dando ainda lugar a um mosaico de Estados independentes e soberanos, onde os Hebreus se  sentiram em liberdade. Infelizmente, para as Monarquias Peninsulares, a  poderosa arma, que foi a Inquisição, manteve-se e só o triunfo dos  ideais da Revolução Francesa, seguidos em Portugal pela Revolução de  1820, a aboliram em 1821. Na Espanha, só anos mais tarde seria extinta.
do Professor Adriano Vasco Rodrigues
Via: Notícias de Trás-os-Montes e Alto Douro


