O sapateiro de Trancoso
O passado e o futuro.
E quem for homem maduro/
Há-de me dar fé inteira."
O sapateiro Gonçalo Anes Bandarra viveu em Trancoso na primeira metade do século XVI. Tinha veia para fazer trovas e era um homem de enorme memória. Durante anos, foi lendo e fixando trechos de uma Bíblia que lhe emprestaram e que estava escrita à mão e em português. A partir do que lia e ia ruminando na cabeça, fez uma grande quantidade de versos em forma de profecias, inspiradas no Antigo Testamento, que culminavam com o aparecimento de um rei justo e salvador. A tudo o que lhe perguntavam, respondia sempre "por termos e razões tão grandes e elegantes que não pareciam ser ditas de quem as dizia, senão dalgum grandíssimo teólogo e se achavam na boca de um homem que parecia mais ser ovelheiro que para falar palavra alguma de razão natural."
As famosas trovas de Bandarra foram lidas e ouvidas por todo o reino, cativando cristãos-velhos, mas sobretudo os cristãos-novos, gente sabedora e ignorantes, ricos e pobres.
Estas trovas acabaram por chegar também às mãos de um desembargador, e Gonçalo Bandarra foi preso e conduzido a Lisboa, em 23 de Outubro de 1541, poucos anos após o estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício em Portugal, fez-se um auto de fé em que o sapateiro foi obrigado a renegar em público o que dizia e escrevia. Mas se o Bandarra ficou calado logo ali, a conversa nacional sobre o rei Encoberto e sobre o "Desejado" estava só a começar.
Texto de André Belo e de Rui Tavares