Por Florbela Veiga Frade
No reinado de D. José e governo do Marquês de Pombal, várias foram as medidas tomadas para alterar a posição do cristãos-novo na sociedade portuguesa. Essas disposições denotam uma certa abertura ao espírito das Luzes patente na aplicação de determinados conceitos, que estão ligados com uma visão mais racional do mundo. Mas, não deixam de ser marcadas pelo espírito da sua época em que o mais importante é a centralização do poder régio e o seu fortalecimento face à Igreja. Neste âmbito, não se quer instaurar a tolerância religiosa ou a extinção do Tribunal do Santo Ofício, mas sim a manutenção do crime de heresia na jurisdição da lei secular e a colocação da Inquisição sob a alçada governamental.
Rei D. José I.
Marquês de Pombal.
A cristalização de determinados comportamentos e a dificuldade em transformar mentalidades, podem explicar em parte a insuficiência dessas disposições. Contudo, há que ter em conta que o reinado de D. José foi bastante mais moderado do que qualquer dos anteriores em relação à questão dos cristãos-novos e à sua participação na sociedade portuguesa.
A política do rei retoma em muitos aspectos a que prevalecia no século XVI antes do estabelecimento da Inquisição no que se refere à tolerância para com os conversos. Ressalve-se que muitas vezes a lei diverge da praxis jurídica e social, uma vez que ao longo dos séculos houve várias formas de contornar o que era proibido e inaceitável socialmente.
Depois do terramoto e da destruição do edifício da Inquisição, D. José mandou a 2 de Maio de 1768, destruir todas as listas de tributos e cópias onde vinham citados os nomes dos cristãos-novos. (1) Desta forma, fomentava-se a assimilação e simultaneamente garantia-se a privacidade dos descendentes da nação hebreia, tornando-se mais difícil provar a ascendência cristã-nova de cada um.
Segundo Ribeiro Sanches, a existência da Inquisição e dos autos-de-fé, das inquirições sobre limpeza de sangue, dos perdões gerais e fintas pagas unicamente pelos cristãos-novos, fez com que o número destes aumentasse ao longo do tempo em vez de diminuir. (2) A actividade da Inquisição seria portanto fomentadora de toda uma série de complexas redes de valores e interesses profundamente gravados no comportamento e mentalidade de Portugal setecentista.
O resultado final da nova forma governativa materializou-se na Lei de 25 de Maio de 1773, que aboliu a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, e isto após uma paulatina reivindicação dos descendentes dos conversos por igualdade de estatuto social e possibilidade de aceder a cargos públicos. (3) Esta medida é uma renovação das leis de 1 de Março de 1507 e de 16 de Dezembro de 1524, quando se aboliu a distinção entre cristão-novo e velho.
Todavia, a mentalidade não se modifica por decreto, e muitas foram as interpretações e os abusos perpetrados, e os interesses que eram servidos anteriormente não desapareceram de imediato com a nova lei que se arrisca a ficar letra morta.
Assim, D. José , após consultas e pareceres da Mesa do Desembargo do Paço e da Mesa do Conselho Geral do santo Ofício, decidiu que devia legislar no sentido de não haver quaisquer dúvidas de interpretação.(4) A lei de 15 de Dezembro de 1774, resulta portanto, da vontade régia em terminar com dúvidas ou interpretações falaciosas da lei, dando-lhe a interpretação verdadeira, recorrendo para isso, para além dos pareceres referidos, aos conselhos dos ministros de Estado e de Gabinete.
De facto, a lei de 25 de Maio aboliu a distinção entre cristãos-velhos e novos, mas continuava-se a manchar de infâmia os reconciliados com a Igreja e seus descendentes e ainda a fazer o confisco de bens. Estes dois abusos feitos por algumas pessoas, referidas como alienadas, conduziram à elaboração do diploma de 15 de Dezembro que apontava duas providências.
Antes da lei de 1773 a infâmia aplicava-se ao acusado de crime bem como aos seus descendentes por via paterna, mesmo depois de se ter reconciliado com a Igreja e de ser por ela recebido. Porém, não existia lei secular ou cânone da Igreja que a isso obrigasse, pois a pena de infâmia apenas se aplicava aos hereges que fossem condenados à morte. Por isso, não podia incorrer em infâmia quem verdadeiramente se arrependesse e fosse recebido pela Igreja. Se a confissão e o arrependimento obtêm perdão e misericórdia, ficando-se livre de toda a mácula na esfera religiosa, também na secular o cumprimento da pena concede a reinserção social.
O sequestro de bens ocorre quando se tratam de impenitentes condenados à pena capital a qual é imposta pela justiça secular. Todavia, o Santo Ofício procedia ao confisco dos bens das pessoas, mesmo das reconciliadas (sem que tivessem sentença de morte), o que acaba por ser uma profunda ilegalidade.
A lei de 15 de Dezembro clarifica de uma vez por todas, que só incorre em infâmia e consequentemente perda de bens, os hereges impenitentes sentenciados à pena capital.
Todos os cristãos-novos acusados de judaizantes reconciliados com a Igreja e depois penitenciados, não podiam ser alvo de sequestro de bens porque as suas sentenças não eram de morte, perderão, sim, os bens todos aqueles que puserem em causa esta vontade, agora claramente expressa.
Esta lei de D. José segue as Ordenações Filipinas (5) que delegam na Igreja e juízes eclesiásticos as penitencias espirituais, mas marca definitivamente a esfera de acção da Igreja e a do Estado, que era afinal o que se pretendia.
(1) - Meyer Kayserling, "História dos Judeus em Portugal", São Paulo, 1971, Pág.289.
(2) - Ribeiro Sanches, "Christãos-Novos e Christãos-Velhos em Portugal" 2º ed., Porto, imp. 1973.
(3) - Meyer Kayserling, "História dos judeus em Portugal", São Paulo, 1971, pág. 132-133, Maria José Ferro Tavares, "Los Judios en Portugal", Madrid, Mapfre, 1992, pág.317, 353, 357.
(4) - Lei de D. José de 15 de Dezembro de 1774.
(5) - "Ordenações Filipinas", Livro V, Tit. I, Lisboa,1985, pág. 1148/49.
Cátedra de Estudos Sefarditas "Alberto Benveniste" - News Letter nº 8, Março de 2003.