sexta-feira, 12 de junho de 2015

Alpiarça, a “porta de Israel”‏




Por José João Pais





Nas nossas pesquisas históricas deparamos por vezes com documentos que nos transportam para acontecimentos completamente inesperados e sobre os quais não tínhamos a mínima percepção sobre a sua existência. E muitas vezes, esses documentos que nos surgem entre mãos, pouco têm a ver com o assunto que estávamos a investigar. É o caso que mais à frente vos conto. A pesquisa que fazia era mais fruto de uma curiosidade casual do que para investigar grandes acontecimentos históricos. Queria, simplesmente, saber quantos reis tinham estabelecido a sua corte em Almeirim. Ao passar por D. João III confirmei que tinha sido um deles. Na sua passagem por esta terra, em 1525, encontrei umas linhas curiosas acerca de uma recepção que concedeu a um tal David Judeu. Fui puxando o fio e o fio foi esticando, tornando-se cada vez maior. Desatei nós e acrescentei textos dispersos. Uma leitura transportava-me para outra leitura. Depois foi a inevitável Torre do Tombo. E assim, pescando ora aqui ora ali, fui-me deliciando com a história que me surgia perante os olhos cada vez mais arregalados.


Olhem…deu nisto que irão ler.












Alpiarça - Foto retirada de: todosporalpiarca.weebly.com




Alpiarça foi um nome que alimentou o sonho dos Judeus voltarem a ter uma pátria. É uma longa e extraordinária história que envolve o Ribatejo, e particularmente Alpiarça.
Expliquemos o que se poderia ter passado, há cerca de 500 anos. Há boas fontes para nos podermos debruçar sobre este interessante acontecimento. Vamos ao assunto.
Por volta de 1524 desembarca em Veneza, na Itália, um homem chamado David Reubeni. Apresenta-se como embaixador de um longínquo reino judeu na Arábia, o reino de Chabor, governado por seu irmão José. De facto, esta origem de David tem consistência com aquilo que diz no seu Diário, uma vez que refere ter embarcado em Jiddah, que é uma das principais cidades da actual Arábia Saudita, banhada pelo Mar Vermelho. David chega a Veneza com um grande aparato e digna de uma pessoa de alto gabarito social. Fazia-se acompanhar por uma escolta que ostentava um estandarte branco com inscrições hebraicas das 12 tribos de Israel. Conforme os escritores hebreus coevos o descrevem, “era pequeno de corpo, minguado de carnes pelos jejuns, moreno de face, tipo de abexim, aparentando, em 1525, entre 40 e 45 anos de idade”(Schwarz, ob.cit), no entanto, por detrás desta frágil aparência física, estava um homem “cheio de coragem, de arrojo e de comportamento decidido” (Kayserling, ob. cit. p. 216). 
Propõe-se desenvolver os seus esforços junto da elite judaica e cristã no sentido de se restabelecer o estado judaico de Israel. Aos primeiros solicitava apoio financeiro, aos segundos, apoio logístico, sobretudo armas e navios. Com este auxílio, segundo ele, seria possível voltar à Terra Prometida e dar uma pátria a todos os Judeus. Os seus sonhos são povoados todas as noites pelas palavras do profeta Amós, que ele quer concretizar:
 “Naquele dia, levantarei a tenda caída de David. Consertarei o que estiver quebrado e restaurarei as suas ruinas. Eu a reerguerei para que seja como era nos dias antigos…Trarei de volta Israel, o meu povo exilado. Eles reconstruirão as cidades em ruínas e nelas viverão. Plantarei Israel em sua própria terra e não serão mais arrancados de terra que eu lhes dei”, disse Iahweh teu Deus (in Livro de Amós). 
Durante 7 anos David vai ser o foco das atenções e fonte de discussão, sobretudo entre a comunidade judaica, muitos dos quais o tomam como o Messias aguardado. Ideia que sempre rejeitou, por temer que essa atitude lhe dificultasse a missão junto dos reis cristãos. Apresentava-se apenas como um guerreiro com a missão de voltar a dar um lar aos judeus.
Sabemos da existência deste homem por vários documentos, alguns dos quais existem na Torre do Tombo, sobretudo na chancelaria de D. João III, nos documentos da Inquisição portuguesa e espanhola e também em comentários da época que chegaram aos dias de hoje. Outra boa fonte é o romance histórico de Marek Halter, o Messias, de que falaremos mais adiante. Mas a principal fonte de conhecimento desta personagem é o seu próprioDiário, a maior parte do qual foi escrito durante a sua estadia em Santarém. Nele é descrito o seu percurso desde o deserto de Habor, donde se diz natural, passando pela terra do Prestes João, a Etiópia, pela Península Ibérica e pela Itália, nomeadamente Roma e Veneza. Aí descreve os objectivos essenciais que se propõe atingir. No Dicionário do Judaísmo Português (ob. cit. pp. 461-462) pode ler-se que este Diário, embora escrito na primeira pessoa, terá sido redigido pela mão de Salomão Cohen, secretário de David, e que em Portugal também lhe serviu de intérprete, o que não invalida a sua autenticidade enquanto descrição dos acontecimentos vividos por Reubeni. De facto, segundo o mesmo Dicionário do Judaísmo Português (ob.cit), “há documentação dos meios hebraicos e dos países cristãos que atesta a diacronia das situações narradas no Diário e a presença das pessoas contactadas por David Reubeni. Do ponto de vista factológico, este constatar da veracidade da narrativa episódica é fulcral para dimensionar o Diário como uma fonte primordial-como uma outra visão-sobre acontecimentos sociais e políticos verificados nas terras por onde passava”.






David Reubeni, por Arthur Szyk.




Uma cópia deste manuscrito encontra-se na biblioteca Bodleana de Oxford e o estandarte que a sua escolta transportava pode ser visto ainda hoje no museu judaico de Praga.
David Reubeni dizia-se príncipe de Chabor e descendente da tribo de Ruben ou Reuben, daí o seu nome. Era uma das dez tribos judaicas das 12 tribos originais que acompanharam Moisés até ao Monte Sinai e à Terra Prometida. Para os menos esclarecidos nesta matéria devemos dizer que Ruben (Reuben) seria o filho mais velho de Jacob que deu o seu nome a uma das tribos de Israel, tal como aconteceu com outros filhos deste como Zabulão, Gad, ou Levi, entre outros.
O sonho que David Reubeni transportava era o sonho de milhões de Judeus. Regressar à Terra Prometida, em frente da qual Moisés morrera sem a haver atingido. Mas iriam atingi-la e ali viveriam até serem expulsos. A Terra Prometida era terra interdita à comunidade judaica desde os primeiros anos da era de Cristo. Os Judeus erravam pelos quatro cantos do mundo, expulsos de uns e outros países. Em 1492 foram os Reis Católicos de Espanha a expulsá-los e a declarar uma guerra de morte aos sefarditas. Por sua vez, D. Manuel I é instigado pelos reis espanhóis a seguir idêntico tratamento. Não o faz, mas, em troca, obriga-os à conversão transformando-os em cristãos-novos. A criação da Inquisição levou muitos deles à fogueira em Portugal e Espanha.
Na outra ponta do Mediterrâneo, com a queda de Constantinopla em 1453, o império otomano, liderado por Solimão, vai tomando conta do mar e do comércio que por aí se faz e, ao mesmo tempo, alarga as suas fronteiras pela Europa dentro e pelo médio oriente. Com efeito, após a conquista de Constantinopla, em 1453, os turcos conquistaram a Síria, a Palestina, o Egipto, toda a África setentrional, a Grécia e os demais estados balcânicos, tendo invadido Buda, capital da Hungria e chegado às portas de Viena. A terra de Israel está, pois, em seu poder nos inícios do século XVI.
É neste contexto histórico que, corria o ano de 1524, David Reubeni chega a Veneza. Na cidade dos Doges contacta com os representantes da numerosa e influente comunidade judaica que vivia no Ghetto Novo, no bairro de Cannaregio (nota do autor: o nome "Ghetto" provém de uma outra palavra veneziana "getto" que significa "fundição". De facto, o bairro judeu de Veneza foi construído no lugar de uma antiga fundição, depois passou a generalizar-se o uso da palavra gueto para designar uma zona definida onde vivia confinado um grupo de pessoas, como, por exemplo, o conhecido gueto de Varsóvia).








Como íamos dizendo, David é recebido pelos membros da comunidade judaica veneziana e pede-lhes que utilizem a sua influência para que consiga uma audiência com o Papa Clemente VII. Este Papa florentino da família Médicis era tido como um amigo e protector dos judeus. O objectivo de Reubeni era propor-lhe uma aliança judaico-cristã para o ajudar a levar de vencida os muçulmanos, expulsá-los da Terra Santa e dos locais que haviam ocupado. O interesse era recíproco. Para os judeus tratava-se de restaurar o reino de Israel. Para a cristandade tornava-se imperioso parar o avanço dos exércitos muçulmanos que atingia já o coração da Europa.
David Reubeni não encontra qualquer dificuldade em conseguir a ansiada audiência papal. O líder dos cristãos fica entusiasmado com a proposta. A ideia de lançar uma nova cruzada contra o Islão era apelativa. Os seus ancestrais já o haviam feito. Assim, promete-lhe empregar todo o seu prestígio, enquanto chefe da cristandade, para lhe abrir as portas dos mais importantes reinos cristãos. Só eles poderiam, de facto, ajudar a formar um exército para esta nova cruzada. Nesse sentido, o Papa aconselha-o a ir a Lisboa apresentar o seu projecto, dando-lhe uma carta de recomendação ao rei português, que naquela época era um dos mais poderosos da Europa. De facto, Portugal estava nas primeiras décadas do século XVI a usufruir das vantagens de ter o monopólio da rota do Atlântico em direcção à India e começava também a focar a sua atenção no Brasil, descoberto em 1500. O rei português, poderia, por sua vez, servir de intermediário para a promoção de um encontro com o seu cunhado Carlos V, rei de Espanha, da Itália e imperador de Alemanha. Mas, possivelmente, as expectativas de David, relativamente ao rei português não seriam muito altas, pois, segundo Alexandre Herculano (o,cit. p.109) o rei, “fosse por ignorância, fosse por vício da educação, era um fanático”. Os cristãos-novos não tinham uma vida facilitada nesta altura, apesar deste mesmo rei ter confirmado em 1522 e 1524 todos os privilégios dos judeus convertidos e, entre eles, os que lhe prorrogavam as garantias de segurança individual e de imunidade material até 1534. Mas o cutelo pendia sobre a sua cabeça. De facto, o rei dava instruções ao embaixador no Vaticano, Brás Neto, para que, em segredo, tratasse junto do Papa da instalação da Inquisição, à semelhança do que já acontecia em Espanha. O que viria a acontecer pela bula de 17 de Dezembro de 1531,“Cum ad nihil magis”, emanada do Vaticano por Clemente VII, onde nomeava e especificava as atribuições do primeiro inquisidor-geral, frei Diogo da Silva.
Contudo, era com o cognominado rei Piedoso que David queria falar em primeiro lugar.
Com a prometida intersecção do Papa, David Reubeni conseguira um salvo-conduto do rei Português para se deslocar a Portugal. Sem este passaporte diplomático Reubeni não poderia entrar em Portugal legalmente. Na realidade, após a publicação do chamado Édito de Expulsão dos judeus, assinado por D. Manuel I na vila de Muge em 5 de Dezembro de 1496, determinava-se logo no seu preâmbulo “Que Judeus e Mouros se saiam destes Reynos, e nom morem, nem estem nelles”, dando-lhes até finais de Outubro, ou seja, um prazo limite de 10 meses, para abandonar o país. Mas não abandonaram. A conversão forçada resolveu o problema. Começava o tempo dos cristãos-novos. A partir daí, qualquer deslocação em Portugal carecia da prévia autorização do rei. Assim, o salvo-conduto era um objecto essencial para um judeu viajar em Portugal em 1525 sem ser molestado ou impedido pelas autoridades.



David Reubeni desembarcou em Tavira no dia 22 de Outubro de 1525. Deste porto algarvio expediu, dois dias depois, uma carta ao rei onde diz ao que vem. Aqui vos deixo o seu teor.
«Magnifica Sacra Magestade lllustrissimo Rey de Portugal, Saude, escrevo esta so pera avisar a Vossa Magestade como o vosso servo sam arribado aquy na Terra de Vossa Sacra Magestade e sam enviado aquy do deserto de Habor per mandado dei Rey giusepe meu Irmão e de sesenta (aliás, Setenta) seus velhos Conselheyros e Juizes, os quaes todos seram ao mandado de vossa Magestade: tem sua Senhoria açerca de 300.000 bons combatentes e tem carrego de sua Justiça e Razão todas as segundas e quintas feyras, e com acôrdo o dicto meu Rey giusepe com seus setenta Conselheyros mandaram a mym vosso novo servydor a fallar a Vossa Magestade cousas de Importancia e Segredo o que Vossa Magestade folgara de saber quando ouver por bem de me ouvir por que sera pera honrra e gloria de Vossa Magestade e onde o vosso servo sera a serviço des Vossa Sacra Magestade sempre muy aparelhado.
Escrita em tavilta (Tavira) terra de Vossa  Magestade onde sam arribado a 22 dias do presente mes per mar, feyto a 24 doutubro 1525.
Per mym vosso novo servo, Davit filho del Rey Salmon Judeu».
(Schwarz, ob. cit.)
O que ressalta desta missiva é o facto de ele pretender “fallar a Vossa Magestade cousas de Importancia e Segredo”.
E que segredos seriam estes? Apresentar o seu plano sionista e conseguir o apoio de Portugal, sobretudo logístico, para o concretizar.
Mas, deixemos David fazer a sua viagem de Tavira até ao paço real através do Alentejo e falemos um pouco de D. João III. Era um rei jovem, tinha então 23 anos e estava no trono à 4. Aliás, quando o nosso rei toma posse a Europa influente estava dominada por reis jovens, como era o caso do imperador Carlos V com 22 anos, ou de Francisco I de França com 28, ou ainda de Henrique VIII da Inglaterra com 31 anos. Por outro lado, D. João III casara em Tordesilhas a 10 de Agosto deste mesmo ano de 1525 com Catarina de Áustria, irmã mais nova do imperador Carlos V. Tal acontecimento reforçava a importância do rei português no contexto político europeu. Em “troca” deste acto diplomático, que era um casamento real, Carlos V casa no ano seguinte com Isabel, irmã do rei de Portugal. Era uma forma de diminuir as tradicionais tensões políticas entre Portugal e Espanha.
No momento da visita de David Reubeni, a novel rainha estava grávida de três meses. Aguardava-se o herdeiro de D. João III. Era um assunto de estado relevante e preocupação dominante para o casal real. Neste final do ano de 1525 a peste grassava em Lisboa. Tornara-se perigoso para o rei e para a rainha grávida permanecerem na capital. Por isso, a corte muda-se para Almeirim, vila que noutras ocasiões já tinha tido essa honra.
Com as movimentações provocadas por estas deslocações reais, mais ou menos longas, Almeirim agitava-se. Ganhava uma vida nova. Saía do torpor quotidiano, estado normal num pequeno aglomerado populacional rural. O escritor Marek Halter, no seu livro O Messias (p.183) descreve a vila ribatejana como “um pequeno burgo encostado a um imponente castelo mourisco, com um convento de Clarissas e uma igreja gótica”.
Uma semana depois de deixar Tavira, Reubeni chega ao Ribatejo. A notícia da sua chegada corre célere pelo reino. Sabe-se que provocou a curiosidade geral e um fascínio especial entre a classe intelectual. Alimentou discussões e dividiu opiniões e, sobretudo, criou grandes expectativas entre os cristãos-novos. Viam nele o Messias aguardado e que as constantes perseguições ainda fazia mais desejado. Entre os membros da corte havia os que olhavam esta visita com simpatia. No fim de contas, este judeu trazia fortes credenciais do Papa Clemente VII, o expoente máximo da cristandade. Nesta atitude favorável, percebia-se a posição do rei e do seu confessor. Na sua perspectiva, o projecto de David Reubeni, que visava lutar contra o Império Otomano, poderia permitir a Portugal algumas vantagens na zona do Mar Vermelho e poderia reforçar a sua posição na região descoberta por Vasco da Gama 27 anos antes. Acrescia ainda o facto que, para este grupo que girava em torno do rei, se tornava imperioso participar num movimento apoiado pelo Papa que tinha como objectivo libertar a Terra Santa do Islão. A ideia de Cruzada era vista com agrado. Com posição diferente do rei, e por isso contra a recepção ao judeu, que consideravam um aventureiro, tínhamos a rainha Dª Catarina, que era a irmã mais nova do imperador Carlos V e que, curiosamente, foi a única esposa de um reinante português a assistir às reuniões do conselho do rei. Tinha pois, voz influente no aconselhamento para uma tomada de posição. O núncio papal em Lisboa, Giovani Ricci, diria, anos mais tarde, que, de facto, “é ela quem governa” (Mattoso, ob. Cit. p.741). Contrário ao apoio ao judeu era também Miguel Silva, o embaixador português no Vaticano e, no mesmo sentido, ia a posição do superior dos Jesuítas, Rodrigues de Azevedo. Nenhum deles via com bons olhos a recepção que o rei preparava a David. Estes últimos lutavam pela criação da Inquisição, que já era uma realidade em Espanha. Viam na chegada deste judeu, que muitos apelidavam de Messias, um factor de perturbação no reino e o prenúncio de revoltas envolvendo os chamados cristãos-novos. Assim, pensavam que um homem que estava a despertar tantas paixões e que arrastava multidões para o ver, poderia trazer também muita agitação social em Portugal. Isso já se verificara em Veneza, em Roma, agora na chegada a Santarém e Almeirim. Finalmente, consideravam que os cofres da nação não estavam em condições de apoiar financeiramente esta acção. Neste aspecto, a chamada facção espanhola (por causa do apoio de Catarina), tinha uma certa razão de ser. De facto, D. João III recebeu como herança um império cuja dispersão pelo mundo era desproporcionado relativamente aos recursos humanos e financeiros do país. Tanto assim era que, em 1534, “o Estado português é obrigado a faltar aos seus compromissos para com os credores estrangeiros” (Saraiva, ob. cit. p.55). Daí a decisão de abandonar esse sorvedouro de gente e dinheiro que eram as praças do norte de África, Alcácer-Ceguer, Arzila, Azamor e Cochim. O rei concentra a sua atenção no reforço da rota das especiarias da India, investindo na compra das Molucas à Espanha, que ficou resolvido pelo Tratado de Saragoça de 1529, e apostando na colonização activa do Brasil com a distribuição de capitanias. Alexandre Herculano aponta, contudo, várias outras razões para este descalabro financeiro que atingiu o país. Segundo ele, “o reino estava cheio de vadios que viviam opulentamente, sem se saber como. A corte andava atulhada de ociosos e a casa real dava o exemplo da falta de ordem e de economia” (ob. cit. pgs.114/115).
É neste ambiente social, político e económico, que David Reubeni chega a Portugal e se apresta para ser recebido na corte portuguesa instalada em Almeirim. 
Depois de uma semana de viagem desde o Algarve, David e a sua comitiva alojam-se em Santarém, num antigo palácio dos Templários posto à disposição pelo rei. Estou convicto que esta moradia se inseria na área adjacente à Igreja de Santa Maria da Alcáçova, mesmo à entrada do jardim das Portas do Sol. De facto, esta igreja foi construída por iniciativa do mestre da Ordem do Templo, D. Hugo Martins, no século XII, logo após a conquista de Santarém por D. Afonso Henriques. Há inscrições a atestar este facto. Na Idade Média a igreja comunicava directamente com o Paço Real de Santarém ao qual dava o apoio religioso. Terá sido este o alojamento onde David esperou para ser recebido pelo rei.






D. João III de Portugal.




A audiência real acontece nos primeiros dias de Novembro. E é, segundo Marek Halter, (ob. cit. p.198) “numa sala redonda, cujo chão estava coberto por espantosos azulejos de inspiração árabe” que o judeu é recebido, de uma forma entusiástica e amigável, como um verdadeiro embaixador.
Reubeni pede a D. João III apoio logístico para constituir e treinar em Portugal um exército formado por Judeus que viriam de todo o mundo para se alistar. Solicitava também navios para transporte desse exército até à Terra Santa. O financiamento da expedição seria feito por doações de judeus de todo o mundo. Seriam estas “as cousas de Importancia e Segredo” que queria transmitir de viva voz ao rei. As vantagens que adviriam para Portugal seriam muitas, segundo David Reubeni. Desde logo ganhava com o enfraquecimento da influência otomana na rota do Levante que colocava os produtos da India no Mediterrâneo, quer através do Mar Vermelho, quer por terra, e que faziam concorrência aos produtos portugueses transportados pela rota marítima atlântica. Segundo David, se o ataque aos muçulmanos fosse coroado de êxito, os portugueses poderiam estabelecer novos pontos de apoio e feitorias em zonas que até então lhe estavam interditas devido ao controlo dos mouros, nomeadamente no Mar Vermelho. Curiosamente, o grande herói da descoberta do caminho marítimo para a India, Vasco da Gama, morrera há cerca de um mês, precisamente na India, para onde fora nomeado vice-rei em 1524.
Parecia uma boa contrapartida aos olhos do soberano português, aquela que o príncipe de Chador lhe apresentava. Ficaram aprazados novos encontros para os dias seguintes. David Reubeni não deve ter dormido nessa noite na expectativa da decisão. A concretização do seu projecto dependia dela. Mas o rei D. João III não ficou conhecido como sendo um rei de decisões rápidas. Alguns historiadores dizem que isso era por uma questão de estratégia política (Serrão e Marques, ob. cit.), isto é, dar tempo ao tempo para amadurecer a ideia. O que é certo, é que foram anulados os encontros seguintes sem haver qualquer perspectiva de marcação de novas datas para encontros futuros. Primeiro, foi uma saída real intempestiva para fora de Almeirim, que demorou mais de dois meses. Depois, foi o final da gravidez da rainha que viria a dar à luz o príncipe D. Afonso, em 24 de Fevereiro, e à volta do qual se concentraram as atenções de toda a corte e particularmente do rei, já que se tratava do nascimento do herdeiro do trono. A saúde precária do recém-nascido, que viria falecer em Santarém com cerca de 4 meses, ainda mais preocupava a corte. Tudo isso foi atrasando a decisão do rei e mantendo David em Santarém na expectativa quanto ao futuro do plano. Só 7 meses depois da audiência de Almeirim houve uma resposta oficial ao pedido formulado.
No dia 6 de Maio de 1526 da era cristã, ou seja, no 17º dia do mês de Iyar do ano de 5286 depois da criação do mundo, segundo o calendário judaico, D. João III assina o decreto onde se prontifica a apoiar o judeu com oito caravelas e com 4.000 peças de fogo. Com esta e outras ajudas e com um exército a criar, contava David Reubeni expulsar os otomanos da Terra Santa e instalar, definitivamente, uma pátria para os Judeus que erravam por todo o mundo, vítimas das mais odientas perseguições e expulsões.
O decreto agora assinado, segundo a visão de Marek Halter, previa desde logo a criação de um campo de treinos para o exército judaico sob a direcção de David Reubeni e que iria contar com ao apoio do capitão Martim Afonso de Sousa, indicado pelo rei português, uma vez que era fidalgo da sua máxima confiança e estima. Na realidade, este capitão era primo de um dos homens mais influentes na corte, o Conde da Castanheira, que então “mandava em tudo” (Serrão e Marques, ob. cit. p.534). Martim Afonso de Sá seria um dos primeiros donatários de uma capitania no Brasil e, posteriormente, governador da India. Foi este o homem que o rei indicou para ajudar, e certamente para vigiar, David Reubeni.
Samuel Schwarz (ob. cit.) refere que o recrutamento de voluntários, numa primeira fase, poderia ser feito com facilidade entre os judeus portugueses e espanhóis da Itália e da África do Norte, com os quais David estava em permanente contacto e que, durante a sua estada em Portugal, lhe enviaram constantemente delegações e fundos.
A instalação do acampamento militar é, na versão de Marek Halter, projectada para Alpiarça, num local onde, no reinado de D. Manuel I, já existira um aquartelamento para recrutas. As casas de adobe que então se haviam construído iriam também servir agora para instalar os jovens recrutas judeus. Aquele escritor, na sua obra O Messias (p. 212), descreve o aquartelamento como “um enorme quadrilátero rodeado de edifícios de um andar e de muralhas ameadas. Ficava encostado a uma aldeia ocre construída em redor de igreja gótica. Para Leste, ao longo do rio (Tejo), havia um campo de tiro reservado aos arcabuzeiros. Quatro léguas mais longe, estava previsto um vasto perímetro desértico para exercícios com canhão. As construções do campo destinavam-se a escritórios, cantinas e enfermarias. O bloco central, pintado de rosa, servia de aquartelamento de oficiais”. Os médicos, esses foram recrutados entre a elite de “cristãos-novos” de Beja, Évora e Faro. Devemos referir que este livro de Marek Halter, escritor polaco de origem judaica, “é um romance histórico, baseado em episódios autênticos da História dos Judeus em geral e da História dos Judeus Portugueses em particular”, como refere António Carlos Carvalho em nota da edição portuguesa.



Mas continuemos a história…


Marek Halter conta-nos que, a partir do dia seguinte à promulgação do decreto começaram a afluir jovens ao campo de Alpiarça. “Chegaram primeiro os voluntários portugueses, filhos e netos de conversos. Seguidamente apresentaram-se os jovens judeus originários de Marrocos, de Fez, de Safim, de Mascara. E, clandestinamente, “cristãos-novos” provenientes de Espanha. Ao fim de um mês começaram a chegar grupos vindos de Itália, de França, da Alemanha, dos Países-Baixos e até da Polónia”. Esgotados das longas jornadas que haviam feito desde as suas terras até Alpiarça, todos comungavam do mesmo sonho: restabelecer o reino de Israel. “Morenos, louros, de pele tisnada, branca ou trigueira, a cavalo, de burro, a pé, chegavam incessantemente a Alpiarça, cada vez em maior número. Em poucas semanas esta modesta terra portuguesa, na qual se apoiava o campo militar, tornara-se, de certo modo, um arrabalde de Jerusalém. Surgia como a imediata e derradeira antecâmara de redescobertas longamente sonhadas, longamente diferidas: as de um povo e da sua terra. Alpiarça ou a porta de Israel: essa visão que fazia com que jovens Judeus, vindos das profundezas da Europa ali acorressem. Em breve eram 6 mil, depois oito, e doze” (Halter, ob. cit. p.213). Depois de alguns meses de treino intensivo, David Reubeni fixa o final do mês de Outubro para embarcar o exército judeu de Alpiarça com destino à Terra Santa.  
Mas quis o destino que este objectivo fosse interrompido. As movimentações dos que se opunham ao apoio a David Reubeni conseguiram lançar obstáculos intransponíveis. Poucos dias antes de embarcar as suas tropas, David é acusado de querer converter ao Judaísmo os cristãos de Portugal. Isso era um dos crimes mais graves que se podia cometer em Portugal e Espanha nesta altura. O pretexto foi o desaparecimento de Diogo Pires, doutor em direito, escrivão da Casa da Suplicação e pessoa chegada ao rei. Dizia-se que se tinha convertido ao judaísmo e para confirmar essa conversão havia sido circuncisado pelo próprio David. Este rejeitou tal acusação perante o rei. Mas a dúvida estava lançada e foi explorada até à exaustão pela facção oposta à presença e favorecimento de um judeu na corte. D. João III, apesar da manifesta simpatia que tinha por David Reubeni, ficou indeciso quanto à continuação do apoio que lhe prometera.
Segundo escreve Samuel Schwarz (ob. cit.), David conta no seu Diário que D. João III a princípio lhe tinha prometido a entrega de oito caravelas com 4.000 peças de fogo, mas que nada lhe entregou, dizendo-lhe apenas, à sua saída de Portugal que “não lho podia dar este ano nem no próximo ano”. David acredita que esta decisão representa a anulação da promessa que o rei lhe fizera.
Para Marek Halter a decisão de adiar o apoio prometido vai reflectir-se na alteração da data de partida do exército formado em Alpiarça. E para que ambos saiam airosamente desta situação perante os seus correligionários, o rei alega que o adiamento se deve a uma carta que recebeu do seu cunhado Carlos V a solicitar um encontro com David Reubeni, situação a que não terá sido alheia uma manobra de Dª Catarina, esposa de D. João III, perante o seu irmão. Interessava-lhe, fundamentalmente, adiar para já, a concretização do apoio a David, para que se transformasse num adiamento definitivo. A partida do exército treinado em Alpiarça ficava, assim, condicionada ao resultado do encontro entre David e Carlos V. O tempo se encarregaria de demonstrar que o adiamento fora, de facto, definitivo. A desarticulação do acampamento de Alpiarça e a saída dos jovens militares judeus era o resultado imediato desta decisão. “Certos jovens expressaram o desejo de voltar para as suas famílias. Outros preferiram ficar em Alpiarça, na expectativa de uma eventual partida” (Halter, ob.cit.p.232). Era o fim desta aventura passada em terras ribatejanas. O salvo-conduto para a saída de Reubeni de Portugal é assinado em Santarém no dia 21 de Junho de 1526. No documento, que encontrámos na Torre do Tombo, na Chancelaria de D. João III, é notório o respeito que o rei tinha por esta enigmática e cativante personagem. Aí se exige “que os capitães gerais e especiais da terra e do mar, governadores, regedores de províncias, cidades e lugares, alcaides, juízes e outros funcionários, o tratassem com o devido respeito, deixando-o sair livremente do reino, e levar consigo as 6 pessoas que o serviam, mas que fossem judeus e não cristãos”.
Segundo alguns autores, David ainda permaneceu em Portugal durante mais dois anos. Para Samuel Schwarz, um engenheiro judeu que temos seguido na abordagem deste tema, existem duas cartas dirigidas a D. João III pelo inquisidor espanhol Dr. Nuno de Selaya, datadas respectivamente de 30 de Março e 15 de Junho de 1528. Na primeira, comentada por Alexandre Herculano na História da Origem e do Estabelecimento da Inquisição em Portugal (p.127), o inquisidor espanhol lamenta que «um judeu chegado aos reinos de Portugal, haverá dois ou três anos, vindo de estranhas terras, estava pervertendo à perfídia judaica a muitos cristãos-novos, prometendo-lhes que um rei, irmão seu, os havia de levar à Terra de Promissão».
Sendo assim, só depois de 1528 é que, provavelmente, David Reubeni terá saído de Santarém para continuar os seus contactos, nomeadamente com Carlos V, depois com Fernando I e, de novo, com o Papa. Mas o caminho estava cheio de escolhos, não só entre os cristãos, desavindos uns com os outros, como também entre os Judeus, alguns dos quais tomavam David como um aventureiro e um perigo para a comunidade judaica, cuja situação já era periclitante entre a cristandade. Temiam que a presença deste homem ainda a tornasse mais instável e apressasse a instalação da Inquisição, cujo nome em Espanha, sob a direcção de Torquemada, era sinónimo de terror.
David acaba por ser preso pela inquisição e morto pela fogueira, tal como Diogo Pires, que adoptou o nome judaico de Salomão Molcho. Esta personagem, que se cruza pela primeira vez com David após a sua chegada a Portugal, acaba por ter uma influência decisiva no desenrolar dos acontecimentos protagonizados pelo judeu. De facto, Diogo Pires esteve intimamente ligado à decisão de D. João III em não concretizar o apoio prometido na corte de Almeirim. Depois, foi também devido à sua actuação na audiência perante Carlos V, em que acompanhou David Reubeni, que levou a que o imperador os entregasse ao tribunal da Inquisição. É que, Salomão Molcho pretendeu converter o próprio Imperador.



Há autores que afirmam que Reubeni foi queimado em auto de fé em Lerena, Espanha, no dia 8 de Setembro de 1538. Mas, existem outros documentos que referem que foi queimado pela inquisição de Évora, no seu primeiro auto de fé, em 1542 (Schwarz, ob. cit.). Nesta última versão, David Reubeni teria sido sentenciado na primeira acção levada a efeito pela Inquisição de Évora logo após a sua criação em 1542. Tal é o que transparece de um manuscrito, intitulado: “Memória dos Autos de Fé que tem havido públicos e particulares na Inquisição de Évora”, conforme refere Samuel Schwarz.
Neste manuscrito, que começa pela «Lembrança do Primeiro Auto Público de Fé que se celebrou na Praça da Cidade de Évora, no anno de 1542», são enumeradas as pessoas castigadas, entre as quais se cita «o judeu do çapato, dizem que foi çapateyro.·o qual veyo da India Oriental a Portugal, e lhes meteo na cabeça e persuadio aos moradores do tal Reyno, que era o Messias esperado…e preso e apertado confessou a mentira…».
Ora, o « Judeu do çapato» não seria outro senão Reubeni, que interrogado sobre a sua proveniência, preferiu apresentar-se como sapateiro e não pessoa de estirpe real.
Foi deste modo que terminou, da pior maneira, o périplo de David Reubeni pela Europa cristã com o intuito de voltar a criar uma pátria para os Judeus. Projecto que só viria a ser retomado em fins do século XIX e concretizado após a 2ª Guerra Mundial em meados do século XX. A curiosidade deste primeiro projecto sionista está no seu desenvolvimento em terras ribatejanas, concretamente em Santarém, onde residiu durante a sua permanência em Portugal, depois em Almeirim, sede da corte nessa altura. Alpiarça, por sua vez, ganha um lugar proeminente nesta história e uma projecção mundial, através do romance histórico, O Messias, livro traduzido em diversas línguas, da autoria do escritor de origem judaica Marek Halter.



Destes acontecimentos se faz a nossa História.









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Bibliografia consultada pelo autor



Chancelaria de D. João III, na Torre do Tombo
Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, Verbo
Dicionário do Judaísmo Português, coordenação de Lucia Liba Mucznik, José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, Esther Mucznik e Elvira de Azevedo Mea; Editorial Presença, Lisboa, 2009

Azevedo, J. Lucio de Azevedo, História dos Cristãos-novos Portugueses,68-70, 1921
Cristóvão, Acenheiro “Chronicas dos Senhores Reis de Portugal”, em Colecções de inéditos de História Portuguesa, tomo V-351-352. Lx 1824
Halter, Marek, O Messias, Editorial Bizâncio Lda, Lisboa, 1997
Herculano, Alexandre, História da Inquisição em Portugal, Circulo de Leitores, 1987
Mattoso, José (direcção) História de Portugal, No Alvorecer da Modernidade, Editorial Estampa
Saraiva, António José, Inquisição e Cristãos-novos, Editorial Inova, Lx, 1969
Schwarz, Samuel, O sionismo no reinado de D. João III, in:http://www.aast.ipt.pt/pt/index.php?s=white&pid=270
Site: http://pt.wikipedia.org/wiki/David%20Reuveni?oldid=37362902
(Consultados em Maio de 2015)
Serrão, Joel e Marques, A.H. Oliveira (direcção) A Nova História de Portugal, Portugal do Renascimento à Crise Dinástica, Editorial Presença, Lisboa, 1998