Autores:
António J. Andrade
M. Fernanda Guimarães
Pelos anos de 1700, a freguesia de Carção
contava 150 vizinhos, de acordo com as informações recolhidas por Carvalho da
Costa, havendo quem baixe esse número para 120, significando isto que teria
entre 500 e 600 habitantes.
Repare agora o leitor que, só nos 10 anos que
vão de 1691 a 1701, a Inquisição ali ordenou de prender umas 130 pessoas
cristãs-novas, acusadas de judaísmo!
Tenha-se em conta que todos estes presos,
excepto algum caso raro, eram gente de trabalho, das classes etárias
constitutivas da população activa. E tenha-se também em conta que, em geral, as
prisões e processos do Santo Ofício eram morosas e implicavam o sequestro dos
bens dos prisioneiros e consequente ruína de suas casas, o desbaratar de suas
fazendas, o fim dos laços e das redes comerciais que, muitas vezes, levavam
gerações a construir.
Acresce que muita gente, receando ser presa,
abandonava a aldeia e fugia para o estrangeiro. Tal como, depois de sair das
cadeias, uma boa parte dos processados procurava igualmente o caminho da emigração,
enxovalhados e humilhados que se viam, pois, a qualquer momento, havia quem
lhes lembrasse a infamante situação de judeu.
O pior, no entanto, e as verdadeiras tragédias
aconteciam nas masmorras da Inquisição. Muitos eram os que ali endoideciam,
bastantes os que ficavam estropiados e nada raros os que morriam lá dentro. E
todos, mas mesmo todos eram abalados, física e psicologicamente. E o auge da
tragédia era atingido com a entrega dos presos ao poder civil para serem
relaxados, que o mesmo é dizer, condenados à morte na fogueira.
De tudo isto temos exemplos clamorosos em
Carção: gente que ficou aleijada, gente que ali endoideceu, gente que ali
morreu, gente que preferiu suicidar-se e... houve, pelo menos, 18 que foram
condenados a morrer na fogueira. Até parece que, durante aqueles 10 anos, todas
as forças do inferno se conjuraram contra a comunidade cristã-nova de Carção,
que sofreu um autêntico massacre, um terrível holocausto. E só espanta como a
comunidade sobreviveu, como houve gente que resistiu e como, 40 anos depois, a
geração seguinte, os filhos e netos destes processados souberam manter viva a
chama do marranismo e dar provas inequívocas de resistência aos métodos do
Santo Ofício.
Ao longo destes anos de massacre, houve alguns
momentos que importa registar e que
correspondem aos autos públicos de fé em que foram penitenciados cristãos-novos
carçoneiros. Vamos ver:
1 - Como atrás se disse, houve grandes vagas de
prisões nos anos de 1691-93 e todos os prisioneiros foram entregues em Coimbra.
Alguns deles, porém, foram depois remetidos à Inquisição de Lisboa, acaso por
se tratar de acusações menos comuns. Foram 7 os presos assim transferidos e que
acabaram por sair no auto-de-fé realizado em Lisboa no dia 16.5.1694, na igreja
do convento de S. Domingos.
2 - Auto-de-fé de 17.10.1694. Teve lugar no
Terreiro de S. Miguel, em Coimbra e pregou o padre jesuíta Pires de Almeida.
Saíram no auto 56 pessoas, 25 das quais eram de Carção. Houve 2 homens
condenados à fogueira e um que foi igualmente queimado, mas em estátua, pois
que havia fugido para Castela e não foi possível prendê-lo. Trata-se de um
homem de Carção, João de Oliveira de seu nome,
casado com Catarina Pires ou Lopes que esteve presa em Coimbra
de 1691 a 1694.
3 - Auto-de-fé de 25.11.1696. Realizou-se
igualmente no Terreiro de S. Miguel e saíram 88 pessoas, sendo 43 de Carção. Foram 14 os relaxados em carne, 12
dos quais eram de Carção. E houve 5 relaxados em estátua, sendo 1 de Carção.
Registamos aqui os nomes desses carçoneiros vitimados:
* Atanásio Rodrigues, de 22 anos, filho de
Francisco Rodrigues, o sargento, de alcunha e de Maria Lopes, casado com
Clara de Oliveira, a qual saiu no mesmo
auto, condenada a 7 anos de degredo para Angola.
* António Rodrigues, 45 anos, sapateiro, irmão
do anterior, casado com Helena Rodrigues.
* Helena Rodrigues, atrás citada, filha de
Domingos Rodrigues e de Guiomar Álvares.
* Domingos Luís, 27 anos, solteiro, curtidor,
filho de Gaspar Luís e de Maria Dias.
* Isabel Luís, 29 anos, irmã dos anteriores,
casada com Gaspar Rodrigues.
* Maria Fernandes, 31 anos, filha de Belchior
Fernandes e de Violante Lopes, casada com Miguel Lopes de Leão, o cortesia, de
alcunha.
* Matias Fernandes, 25 anos, solteiro, irmão da
anterior.
* Manuel Lopes de Leão, 36 anos, filho de
Francisco Lopes de Leão (relaxado em 1667) e de Catarina Lopes, surrador,
casado com Catarina Lopes.
* Maria Lopes de Leão, 54 anos, irmã do
anterior, casada com Domingos Fernandes.
* Domingos de Oliveira, barbeiro e tratante, 52
anos, filho de Baltasar de Oliveira e de Maria Lopes, casado em segundas
núpcias com Inês Lopes.
* Francisca Lopes, 56 anos, filha de Belchior
Lopes e de Ana Rodrigues, casada com Luís Lopes.
* Isabel Gonçalves, 56 anos, casada com Estêvão
Pires, sapateiro, natural de Zamora e moradora em Carção.
* Manuel Henriques, o sendineiro, sapateiro,
casado com Maria Lopes. Ausente, foi relaxado em estátua.
4 - Auto-de-fé de 14.6.1699. Igualmente no
Terreiro de S. Miguel e foi pregador frei Domingos Barata. Nele saíram 88
pessoas, sendo 28 de Carção. Daquelas, 6 foram relaxadas em carne e 1 em
estátua. De Carção, foram condenados à fogueira os seguintes:
* Jorge de Oliveira, 46 anos, rendeiro, viúvo
de Maria Lopes Henriques, irmão de Domingos de Oliveira, que atrás vimos.
* Catarina Lopes, a bicha, de alcunha, 39 anos,
filha de António Lopes, o bicho, e de Maria Lopes, casada com Miguel Luís.
* Bernardo Rodrigues, tendeiro, solteiro, irmão
de António e Atanásio Rodrigues, que foram relaxados em 1694. Bernardo tinha
sido preso em 3.7.1693 e morreu no cárcere em 20.3.1695. Para sair no auto e
ser lançado à fogueira, seus ossos foram desenterrados.
5 - Auto-de-fé de 18.12.1701. Também no
Terreiro de S. Miguel e pregou frei Francisco Ribeiro. Saíram 90 pessoas, 2
delas condenadas à fogueira. De Carção, eram 16 os penitenciados.
Marca cruciforme em Carção.
Fotografia de Paulo Lopes
(Cátedra Alberto Benveniste)
Aqui chegados, caberá aos leitores tirar as
devidas conclusões e encontrar as melhores palavras para este processo que nós
consideramos de verdadeiro holocausto de uma aldeia. Escusado será dizer que,
ao início, as acusações que suportam todos os processos são, basicamente, as
mesmas: respeitar o sábado, jejuar no Kipur, participar em práticas judaicas
mortuárias... Depois, ao longo dos interrogatórios, iam-se particularizando as
denúncias e orientando os respectivos processos. Logicamente que todos os
presos acabavam por confessar-se culpados e denunciar os seus companheiros. Estes,
por sua vez, faziam o mesmo, pois se lhes prometia misericórdia e perdão em
troca das suas confissões e mostras de arrependimento.
Igreja matriz de Carção, onde em 1736 foram furtados do seu interior os sambenitos.
Fotografia de Paulo Lopes
Cátedra Alberto Benveniste
(Centro de Documentação)
Nova onda prisões varre Carção em meados do
séc. XVIII, com já foi relatado em trabalhos publicados pelos
autores. Desta vez os cristãos eram
acusados de retirar da igreja os sambenitos dos seus parentes relaxados
nos autos-de-fé de há trinta e
tantos anos. Depois disso as coisas acalmam, a comunidade cristã-nova de
Carção, os que sobreviveram ao "
massacre", começam a sentir os alvores de uma liberdade religiosa com o fim da inquisição que
acontece alguns anos mais tarde.
Fonte: http://almocreve.blogs.sapo.pt/17218.html