segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O Alma-Grande, de Torga




O escritor Miguel Torga, de seu nome verdadeiro Adolfo Correia da Rocha, nascido em Trás-os-Montes (distrito de Vila Real), soube na sua obra literária captar o espírito de um povo rural. Seus anseios, angústias e costumes de um Portugal fechado em si mesmo, caracterizado ainda pelo seu conservadorismo e atraso.

Torga conheceu bem o ambiente vivido nessa região portuguesa, não deixando de retratar os descendentes do rei David que ainda por lá habitavam, levando uma vida dupla, entranhados em segredos e envoltos em tradições estranhas para a restante população. 

Alma Grande é um desses exemplos.







(Desenho de Egon K)




Riba Dal é terra de judeus. Baldadamente, pelo ano fora, o Padre João benze, perdoa, baptiza e ensina o catecismo por perguntas e respostas. – Quem é Deus? – É um Ser todo poderoso, criador do Céu e da Terra. Na destreza com que se desenvencilham do interrogatório, não há quem possa desconfiar que por detrás da sagrada cartilha está plantado em sangue o Pentateuco. Mas está. E à hora da morte, quando a um homem tanto lhe importa a Tora como os Evangelhos, antes que o abade venha dar os últimos retoques à pureza da ovelha, e receba da língua moribunda e cobarde a confissão daquele segredo – abafador. Desses servos de Moisés, encarregados de abreviar as penas deste mundo e salvar a honra do convento, o maior de que há memória é o Alma-Grande. Alto, mal encarado, de nariz adunco, vivia no destelhado, uma rua onde mora ainda o vento galego, a assobiar sem descanso o ano inteiro. Quem vinha chamar aquele pai da morte já sabia que tinha de subir pela encosta acima a lutar como um barco num mar encapelado. – Raios partam o vento! Mas quê! Do mesmo modo que o Alma-Grande era certo na casa da esquina, sempre ao borralho, era certo o bafo da Sanábria a varrer a ladeira. Diante da casa, bastava gritar-lhe o nome. – Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande! – Lá vai… Daí a nada a tenaz das suas mãos e o peso do seu joelho passavam guia ao moribundo. Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há três dias, na sala, esperava impaciente o último alento do agonizante, metia-se pelo quarto dentro, fechava a porta, e pouco depois saía com uma paz no rosto pelo menos igual à que tinha deixado ao morto. Os de fora olhavam-no ao mesmo tempo com terror e gratidão. Às vezes, uma voz ou outra, depois do pesadelo, levantava-se do fundo da consciência e protestava; mas no dia seguinte acontecia ser essa mesma voz que no alto do Destelhado, sobrepondo-se à força do vento, o reclamava. – Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande! – Lá vai… E aparecia à porta logo a seguir. Quando a hora do Isaac chegou, foi um filho, o Abel, que trepou a ladeira. O garoto vinha excitado, do movimento desusado de casa, da maneira estranha como a mãe o mandara chamar o Tio Alma-Grande, e da ventania. – Que tem o teu pai, rapaz? O pequeno olhou fixamente a cara seca do abafador. – Febre… – Bem, vamos então lá… – E que é que o Tio Alma-Grande lhe vai fazer? – Vê-lo… Pela rua abaixo só o vento falava. Rouco de tanto bradar, monocórdico, persistente, era nele que tinha expressão a intimidade de ambos: um, o pequeno, nervoso, inquieto, a braços com pressentimentos confusos, que se recusavam a sair-lhe do pensamento; o outro, o velho, a aceitar aquele destino de abreviar a morte como um rio aceita o seu movimento. Em casa havia lágrimas desde a soleira da porta. Mas a entrada do Alma-Grande secou tudo. Atrás dos seus passos lentos e pesados pelo corredor ficava uma angústia calada, com a respiração suspensa. – O que é que ele lhe vai fazer? – perguntou de novo o Abel, agora à mãe, quando a porta do quarto se fechou. A Lia respondeu ao filho com duas lágrimas silenciosas pela cara abaixo. Lá dentro, colado à cama que a transpiração alagava, o Isaac parecia ter chegado ao fim. Branco, com dois olhos perdidos no fundo da cara, opresso, como que só esperava a ordem de largar a vela. Tinha adoecido havia quinze dias. Um febrão tal que o Dr. Samuel desanimou. Veio, tornou a vir, e acabou por aconselhar que tratassem do caixão. Mas o Isaac era cedro do Líbano, rijo, no cerne. Depois desse desengano ainda o mal o roeu seis dias sem o comer. E sempre de olhinho vivo. Gemia, gemia, finava-se, mas com aquelas duas contas de azeviche a reluzir. Acabou, contudo, por lhe pousar no rosto uma sombra estranha; e a mulher, a Lia, abriu mão da esperança. Dois dias mais, e como na sala a D. Rosa lembrasse a confissãozinha, um irmão do Isaac, o Daniel, chegou-se à cunhada e deixou cair, entre duas palavras de consolo, o nome do Alma-Grande. A Lia, a princípio, reagiu quanto pôde. Mas a perspectiva do padre João a entrar-lhe pela casa dentro venceu-a. Mal rompeu a manhã, com uma voz que fez medo ao filho, mandou-o chamar o abafador. Quando o Alma-Grande entrou, o Isaac estava no auge de um combate que quase sempre se trava de corpo estendido. O inimigo era uma parte de si mesmo apostada em perdê-lo. E a outra metade, um pedaço de ser nobre e agradecido à seiva, corajosamente defendia o resto da muralha. As bagadas pelas têmporas abaixo e um ritmo apressado da respiração davam sinal desta guerra. Mas de nada mais precisava, quem olhasse com limpos olhos humanos, para sentir a grandeza e a solenidade de tal hora. Por desgraça, o Alma-Grande não podia ver aquilo. Insensível à profundidade dos mistérios da vida, sem o estremecimento de uma fibra sequer, avançou para o leito num automatismo rotineiro. O seu papel não era olhar; era ir inteiro com as mãos ao pescoço, com o joelho à arca do peito, e retirar-se uns minutos depois, como um instrumento que tivesse cumprido correctamente a sua função. No seu castelo o Isaac pelejava sempre. O fole pressuroso do arcaboiço metia ar na fornalha; espesso, cálido, activo, o suor ia brotando do vulcão. 






O abafador, segundo o projecto da Husma, numa colaboração com o Teatro de Marionetas do Porto.




A casa dir-se-ia um sepulcro habitado por vivos petrificados e mudos. Só no quarto havia movimento e palpitação.Calado, o Alma-Grande avançou. Mas quando de mãos abertas e joelho dobrado ia a cair sobre o Isaac, fê-lo parar uma voz diferente de todas as que ouvira em momentos iguais, que parecia vir do outro mundo, e dizia: – Não… Ainda não… Ainda não… Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo, gritos de desespero, apelos sôfregos e angustiados, sem se deter na sua missão sagrada! Quantas vezes! Desta, porém, o apelo e os gemidos soavam-lhe nos ouvidos doutra maneira.– Não… Não… Ainda não… Um pano escuro que até ali vendara os olhos do Alma-Grande queria rasgar-se de cima a baixo. E o abafador, paralisado entre as trevas do hábito e a luz que rompia, lembrava uma torrente subitamente sem destino. – Não… Ainda não… Ainda não… Era terrível o que se passava. À luta que o Isaac sustentava contra forças que nunca ao certo se conheceram, juntava-se o embate dos dois homens, um a saber que ia matar, outro a saber que ia ser morto. Estiveram assim algum tempo, de olhos cravados um no outro, a medir-se. Pesado, o suor escorria pela cara do Isaac; quente, o sangue martelava nas têmporas do Alma-Grande. Foi o ruído súbito e em guincho de uma porta que fez explodir aquela concentração. O barulho a ouvir-se, e o Alma-Grande, como um peso suspenso e de repente liberto, a cair em cima do moribundo. Nem uma palavra só. Apenas um baque surdo, e as mãos sôfregas do agressor à procura do pescoço do lsaac. Mas a porta que rangera dera entrada a alguém. A um vulto que o Alma-Grande adivinhava atrás das costas, parado, lívido, a tentar compreender. Um esforço supremo do Isaac para se livrar das garras que o apertavam e a presença atónita do Abel, tiraram às mãos e ao joelho do Alma-Grande a força habitual. Bem que se extremara nele o assassino, o animal que bebia a grossos tragos o fio de vida que encontrava no caminho! Bem que se lhe avivava na consciência a certeza de que era matar a razão do seu destino! Em vão. O puro instinto não tinha coragem para empurrar aquelas mãos e aquele joelho diante de uma testemunha. Ergueu-se. Com o rosto coberto por um pano de lividez igual à do agonizante, voltou-se. E sem coragem para encarar os arregalados e aflitos olhos do pequeno, que o varavam, silenciosamente, saiu. Atravessou a sala cabisbaixo, longe da majestade trágica das outras vezes. Deixava atrás de si a vida, e a vida não lhe dava grandeza. Quando, um segundo depois, a Lia, como um bicho culpado, entrou no quarto, o filho estava sentado na cama, com a pequena mão na testa do pai. A criança debatia-se num agitado mar de brumas; mas o seu coração ditava-lhe a mãozita ali, na fronte escaldante do que lhe dera o ser, do mesmo modo que lhe ordenara já a entrada sorrateira e inquieta no quarto. E foi talvez o gesto inocente e filial que fez correr novamente nas veias do Isaac o sangue da confiança. Sem confissão, vinte dias depois comia o caldo ao lume como se nada tivesse sido. E nada tinha sido realmente para toda a gente da terra, menos para ele, para o pequeno e para o Alma-Grande. Os outros passaram da agonia à morte e da morte à ressurreição, na inconsciência de quem passa do calor ao frio e do frio novamente ao calor. Só os três sabiam, de maneiras diversas, que o drama fora mais negro e profundo. O Isaac vira as garras da morte ao natural; o Alma-Grande olhara pela primeira vez a escuridão do seu poço; o garoto, esse, pressentira coisas que não podia clarificar ainda no pensamento. Vagaroso, o tempo foi deslizando; e com ele apagara-se já de todo na lembrança da terra a doença do Isaac. Missa e Sabath. Os três, porém, debruçavam-se sem descanso sobre o lago onde se reflectia a imagem negra do passado. O Isaac, cada vez mais dorido, olhava, olhava, e via a vingança; o Alma-Grande, cada vez mais culpado, olhava, olhava, e via o medo; o pequeno, inocente, via apenas a angústia de não entender. E os três formavam como que uma ilha de desespero no mar calmo da povoação. Não se falavam, fora do filho a pedir bênção ao pai, do pai a dar-lha, e de uma saudação ambígua e monossilábica do Alma-Grande ao passar pelo Isaac. Mas traziam-se guardados uns aos outros, como se nenhum deles quisesse perder a hora em que, para a eternidade, varressem do céu das consciências a nuvem pesada que o toldava. E esse momento, finalmente, chegou. Vinha o Alma-Grande de ver a filha e os netos, em Bobadela, quando o Isaac, que o seguia como um cão de fila, lhe saltou à estrada. Testemunhas, só Deus e o Abel, que, sem o pai suspeitar, o acompanhava também por toda a parte, e olhava a cena escondido atrás de um fragão. – Não matarás… Assim era no Evangelho. Fora dele, numa lei diferente, a moral tinha outros caminhos, como o próprio Alma-Grande sabia. – Não matarás… O Isaac, porém, olhava o Alma-Grande com os mesmos olhos implacáveis que lhe vira nas horas de agonia. – Não… Não… Mas o Isaac era o mais novo e o mais forte. E, quando o Alma-Grande foi a dar conta, estrebuchava no chão, de costas, com o pescoço apertado nas mãos do outro, e com a tábua do coração sob o peso infinito de um joelho. – Não… Não… O pequeno, do penedo, via a cara congestionada do Alma-Grande, e ouvia o esforço da respiração a forçar o garrote. – Não… Possantes, inexoráveis, as tenazes iam apertando sempre. E, com mais um estertor apenas, estavam em paz os três. O Isaac tinha a sua vingança, o Alma-Grande já não sentia medo, e a criança compreendera, afinal. 




  de Miguel Torga



Novos Contos da Montanha. Coimbra [Edição do Autor], 7ª ed., 1977, p. 15-24.