segunda-feira, 1 de abril de 2013

Queixa das almas jovens censuradas


Um poema que continua muito actual perante a grave crise que Portugal atravessa. Desemprego, uma  nova vaga de emigração jovem, um sem fim de oportunidades perdidas em todos os sectores da vida nacional,  uma excessiva dependência externa e uma enorme falta de patriotismo de quem nos lidera.
Há nele verdades intemporais, que só confirmam que a mudança de rumo para a minha pátria é não só necessária como urgente. 




Queixa das almas jovens censuradas


Poema de Natália Correia



Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola.


Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade.


Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência.


Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro.


Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras dos avós
para jamais nos parecermos 
connosco quando estamos sós.


Dão-nos um bolo que é a história
da nossa história sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra para o medo.


Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
sonos vazios despovoados
de personagens do assombro.


Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco.


Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura.


Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante.


Dão-nos um nome e um jornal,
um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino.


Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
não é a vida. Nem é a morte.



Natália Correia, in Dimensão Encontrada, 1957