NA RUA DOS SAPATEIROS EM 1599
Caíram sobre ele às estocadas mesmo à porta se sua casa, sita ao fundo da rua dos Sapateiros, na vila de Torre de Moncorvo. Eram três contra um e, embora valente e destemido, nada mais pôde fazer do que aparar com a espada as primeiras estocadas e rapidamente meter-se em casa cuja porta a mulher lhe abrira e ainda mais depressa fechou, atrás dele. Da mão esquerda escorria sangue, que lhe abriram um lenho bem fundo e no chão da rua ficou o dedo mindinho, que lho cortaram com uma espadeirada. Antes de prosseguirmos, convirá que apresentemos os contendores:
De um lado, Manuel Rodrigues Isidro, 24 anos, cristão-novo, comerciante e rendeiro, certamente o homem mais endinheirado da terra, um exportador e importador que anualmente pagava mais de 100 mil reis de impostos alfandegários e contava com a protecção de D. Francisca de Aragão, uma das damas de mais consideradas e influentes na Corte de Madrid.
Contra ele, Francisco da Rosa Pinto, juiz dos órfãos, um cargo muito importante e dos mais rendosos da vila; Álvaro Falcão, escrivão do público, e Diogo Monteiro, homem nobre, meirinho do eclesiástico, a autoridade fiscalizadora do cumprimento das leis da igreja e dos deveres públicos dos cristãos, na área do vicariato de Torre de Moncorvo, que abrangia vários concelhos em redor.
Metidos em casa, os Isidros trataram logo de trancar portas e janelas, que os inimigos eram homens de muito poder e prepotentes, capazes até de arrombar paredes. Além do mais, não convinha afrontá-los directamente
Em sua casas se fecharam também, de repente, a maioria dos moradores da rua dos Sapateiros, que quase todos eram “gente da nação” e aquilo podia ser o início de alguma “guerra” entre as comunidades cristã-nova e cristã velha.
A notícia correu logo pela vila e, da casa de Jerónimo de Castro, sita ao fundo da rua dos Sapateiros, por baixo da porta de S. Bartolomeu, saiu pouco depois um magote de gente, pessoas impantes de nobreza e aristocracia, da primeira do concelho, “todos armados de espadas, redelas e cascos e ouras de antas e chuços” e foram juntar-se àqueles três intrépidos “vingadores” e a outros mais que entretanto haviam chegado, em “assuada” à casa de Manuel Isidro, tentando “abalroar” as portas, metendo as espadas pelas vigias, gritando nomes de “cabrão, peero e judeu” e desafiando para que saísse, que haviam de matá-lo.
Da turba enfurecida e para além dos três já apresentados, destacavam-se os seguintes:Ambrósio da Rocha Pinto, pai do juiz dos órfãos.Pascoal Camelo, padre, familiar do Santo Ofício.
António Camelo, sobrinho daquele, homem nobre e que então empunhava a vara de meirinho, o magistrado judicial mais importante da terra e a quem competia manter a ordem pública e executar as prisões.
Jerónimo de Castro, escrivão da câmara municipal, de certo o emprego mais cobiçado da administração em qualquer concelho.
Tomé de Castro, seu filho, chanceler da correição, espécie de secretário provincial a quem pertencia a escrituração das leis e despachos do corregedor e acompanhar a sua execução nos mais de 20 concelhos que integravam a comarca.
Do que mais se passou naquele dia 17 de Maio de 1599 em volta da casa de Manuel Rodrigues Isidro na rua dos Sapateiros, nada mais sabemos. Mas, se o confronto acabou com o corte de “metade da sua mão” esquerda, a verdade é que Manuel Isidro apresentou queixa na Corte de Madrid, a qual ordenou a execução de uma devassa que foi conduzida pelo dr. António Cabral, da Relação do Porto. E em resultado da mesma, foram metidos na cadeia o juiz Francisco da Rosa Pinto, Diogo Monteiro, Bartolomeu de Castro e Pascoal Camelo, enquanto alguns outros abandonavam a vila e se internavam na terra de coutada de Miranda do Douro.
Não pensem, porém, que as coisas ficariam por ali, que um “judeu”, mesmo que protegido pela Corte de Madrid, passava impunemente por cima de gente assim cotada da nobreza Moncorvense. Era mais que certo um ajustar de contas com aquele homem e seus familiares, todos muito favorecidos de dinheiro e honrarias. E o palco escolhido não seria já a rua dos Sapateiros, em Torre de Moncorvo, mas um outro, bem mais grandioso e bem armadilhado – o do tribunal da Inquisição.
Recordam-se os leitores que Diogo Monteiro, um dos que então foram presos, era meirinho do eclesiástico? De certo, pouco tempo estaria atrás das grades e, logo que solto, não sabemos sob qual pretexto, em Julho seguinte, meteu na cadeia da comarca o Manuel Isidro, sem culpa formada, mas tão só com o propósito de o picar, esperando que ele reagisse e, por qualquer via, faltar ao respeito à autoridade. Parece que chegou mesmo a arrastá-lo pelo chão da cadeia. Porém, Manuel Isidro vestiu-se de paciência e tudo suportou, preferindo guardar suas queixas para apresentar depois ao corregedor da comarca.
Texto da autoria de Maria Fernanda Guimarães e António Júlio Andrade.