O famoso poema de Álvaro de Brito Pestana, editado no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, originalmente publicado em Lisboa em 1516, ou seja, só dois anos depois da menção do prior de Lagos e de Azamor. No longo poema descritivo do quotidiano lisboeta, intitulado “D´Alvaro de Brito Pestana a Luís Fogaça, sendo vereador na cidade de Lixboa, em que lhe daa maneira para os ares maos serem fora dela”, o autor escreve:
“Por marranos nam defamo
os que foram judeus sendo
cristãos lindos,
mas apóstolos lhes chamo,
mui grandes louvores tendo,
mui infindos.
Sam marranos os que marram
nossa fee, mui infiees,
bautizados,
que na lei velha s`amarram
dos negros Abravanees
dotrinados”
É um texto muito interessante porque tece, de forma criativa, alusões ao significado da palavra marrano, na época, em Portugal. Muito explicitamente o autor afirma que não chama marranos aos judeus que se converteram ao cristianismo e se mantém fieis na “Lei Nova”, equiparando-os por isso aos antigos apóstolos, que sendo judeus aderiram à mensagem de Cristo e a divulgaram entre outros judeus e outros povos. São assim apodados de cristãos lindos, ou seja cristãos limpos, puros e perfeitos, termo muitas vezes utilizado na época como sinónimo de cristão-velho, em oposição a cristão-novo. Os versos acerca da verdadeira acepção que, segundo o autor, se deve dar à palavra marrano parecem bastante claros: os marranos são os que marram contra a “nossa fé”, ou seja, a “Fé Católica”. Portanto, há uma indubitável relação entre o substantivo marrano e o verbo marrar. Mas há uma dúvida acerca do significado com que era utilizado o verbo: segundo a forma portuguesa os marranos seriam aqueles que enfrentam a Fé Católica, ou que de forma indomável teimam contra ela. Mas segundo a forma espanhola significaria os que erram e se desviam da Fé Católica, continuando infiéis embora baptizados. A forma portuguesa é indubitavelmente mais agressiva porque coloca os marranos a “enfrentar” a Fé Católica”, ao passo que a castelhana é mais suave pois se insiste aí sobretudo na persistência. A minha hipótese é que o verbo marrar é aqui utilizado na antiga significação castelhana, ou seja, os marranos são os que persistem no judaísmo, tanto que o autor artisticamente contrapõe que, aqueles que verdadeiramente assim devem ser apodados, se “amarram” na “Lei Velha, remetendo para os expoentes culturais dos últimos tempos do judaísmo em Portugal, ou seja, os membros da família Abravanel, entre os quais sobressaiu o famoso D. Isaac Abravanel. Mas a própria qualificação dos Abravanéis como “negros” no sentido de obscuros e temíveis como os magos é bastante interessante como remissão para os seus seguidores marranos. Os marranos serão igualmente negros como os Abravanéis, que na obscuridade dos seus lares e dos seus seres persistem na “Lei Velha”, sob a claridade e limpeza da “Lei Nova”.
de José Alberto Rodrigues da Silva Tavim
Departamento de Ciências Humanas
do Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa.