A 15 de Dezembro de 1647, compareceu no auto-de-fé em Lisboa um judeu de vinte e dois anos, de nome Isaac de Castro (Tartas), aliás Tomas Luís, seu nome de registo civil, era sobrinho do famoso Rabino Moshé Raphael De Aguilar, Isaac era filho de Isabel da Paz, irmã do Rabino. Fazia quase três anos que fora extraditado da Bahia para Portugal e encarcerado nos cárceres da Inquisição, onde esperava julgamento. As atas do processo inquisitorial revelam que Isaac de Castro emigrava para o Brasil-Holandês em 1641, quando contava apenas dezasseis anos de idade. Ali morou cerca de três anos, e em Outubro ele foi denunciado por Dom Pedro da Silva, Bispo da Bahia e delegado da Inquisição no Brasil, e pelos católicos que o tinham visto visitando a sinagoga de Recife durante a sua residência ali. Detido e conduzido para o seu primeiro depoimento diante do Bispo a 14 de Dezembro de 1644, declarou Isaac que o seu nome era José de Lis, que era judeu e filho de pais judeus – Abraham Meatoga e Sarah Meatoga, e nascera em Avinhão. Ainda pequeno, deixara os pais e partira para Tartas, mais tarde para Bordéus e Paris, onde estudou Filosofia e os primeiros princípios da medicina. Fingia-se cristão assistindo a missa e confessando-se.
Num segundo depoimento perante o bispo declarou que sob a influência de professores religiosos de uma universidade católica, compreendera que a Lei de Moisés não era boa, e então ele – judeu circuncidado – começou a praticar ritos cristãos. Saíra então do Brasil-Holandês e fora para a Bahia a fim de ser ali baptizado.
A apresentação que fez do seu caso foi muito inteligente, pois a Santa Inquisição de Portugal não perseguia os judeus que nunca foram católicos. Só pessoas de origem judaica que tinham nascido católicas, ou judeus natos mais tarde baptizados no catolicismo e que este desertaram aberta ou secretamente, estavam sujeitos à Inquisição e eram considerados apóstatas.
O bispo da Bahia, entretanto, compreendeu muito bem o estratagema de Isaac de Castro, aliás muito usado por muitos que eram denunciados como apóstatas. Declarou o bispo que as declarações de Isaac eram “cínicas, repugnantes e contraditórias”, e mandou prendê-lo. Entre os seus pertences, apreendeu-se o seu Tefilin. Foi então ordenada a sua extradição pelo Tribunal da Inquisição de Lisboa, e ele e as atas do processo da Bahia foram despachados em Janeiro de 1645. Em 15 de Março de 1645 foi Isaac de Castro encerrado nos cárceres da Inquisição em Lisboa.
A 22 de Junho de 1645, no seu primeiro depoimento em Lisboa, Isaac de Castro confessou a verdadeira identidade de seus pais e a sua própria. Chamavam-se seus pais Cristóvão Luís e Isabel da Paz, e eram nativos de Bragança, Portugal. Eram cristãos-novos que tinham deixado Portugal por Tartas, França. Seu próprio nome era Tomás Luís, mas não confessou que alguma vez tivesse sido baptizado. Narrou então a seguinte história: que sua mãe, por ocasião do seu baptismo, substituíra-o fraudulentamente por outra criança. Por essa razão ele acreditava não ter jamais tido qualquer obrigação para com a Igreja Católica Romana e estava livre para praticar judaísmo.
No decorrer dos últimos depoimentos Castro declarou que seus pais e seus filhos deixaram a França por Amesterdão, onde seu pai, foi circuncidado, praticando abertamente o judaísmo. Foi então que seu pai adoptou o nome Abraham de Castro, e ele o de Isaac de Castro.
Afim de desviar-se da imagem de judeu devoto e justo, disse ter partido de Amesterdão para Pernambuco e dali para a Bahia por causa de um certo homicídio, que cometera. O pobre Isaac fez o que pode para escapar da armadilha, pois o principal era convencer os seus perseguidores de que nunca fora católico. Mas seus esforços foram frustrados. O tribunal não acreditou na história, e algumas testemunhas depuseram, dizendo que Isaac de Castro tinha vindo à Bahia com a intenção de ali ensinar a fé e os ritos da Lei Mosaica. “Com o intento de ensinar ali a crença e cerimónias da Dita Lei”. A opinião do tribunal era de que os judeus que o haviam mandado a ensinar a Torá aos marranos da Bahia, o tinham instruído a tentar libertar-se em caso de prisão, asseverando que nunca fora baptizado.
O tribunal decidiu que Isaac de Castro era cristão baptizado e que o seu dever era aquiescer a todas as doutrinas da Santa Igreja Romana. Aconselhou-se então ao acusado o desencargo da sua consciência a fim de salvar a sua alma e no interesse de bom andamento do seu processo. De então em diante o Santo Ofício tentou todos os meios para reduzir o moço ao catolicismo.
Isaac de Castro compreendeu nesta altura que não havia esperança de ser posto em liberdade e voltar a sua família em Amesterdão, e que o preço que esperavam ele pagasse para não ser queimado vivo era abjurar a fé judaica e abraçar o catolicismo, de conformidade como fazia a maior parte dos apóstatas em idêntica situação. Devia ter sido nessa ocasião que ele decidiu morrer pela sua fé como mártir Al Kidush Hashem, para a santificação do nome de D-us.
Em subsequentes interrogatórios, Isaac de Castro fez as seguintes declarações:
Desde que atingira a idade da razão, vivera de conformidade com a Lei de Moisés, porque estava convencido que esta era a melhor. Compreendia que os não-israelitas pudessem obter a salvação mediante os preceitos da natureza, mas ele próprio, e todos os descendentes das doze tribos sujeitas às leis do povo israelita só podiam alcançar a salvação mediante a Lei de Moisés. Eram essas as razões por que professava o judaísmo e estava resolvido até mesmo a dar a sua vida por ele.
Declarou observar o judaísmo com firma convicção, recomendando-se sete vezes por dia ao D-us do céu e da terra, único no qual acreditava. Observava os dias santos judaicos e os dias de jejum, pondo na observância um rigoroso cuidado segundo aprendera de seus mestres. Dava especial cuidado à observância do Dia da Expiação. Ulteriormente confessou que costumava observar a Festa de Shavuot e a Festa de Sukot, bem como todas as cerimónias judaicas que tinha capacidade de praticar. Apenas lamentava não poder fazer tudo isso com a mais completa perfeição. Evitava comer qualquer alimento proibido pela lei judaica, e carne de qualquer animal que não fosse morto de conformidade com a lei ritual. Observava todos os dias de jejum, dias santos, e cerimónias acima citados, e todos as leis aplicáveis na diáspora, e os costumes da sua comunidade, tudo com tal cautela e simulação, que os católicos o consideravam católico, os calvinistas calvinista e os judeus, judeu. Somente os judeus sabiam, entretanto, qual a verdadeira fé que ele professava. E assim vivera, até ser preso na Bahia. Resolvido a dar a sua vida pela fé, enquanto prisioneiro em Lisboa continuou a observar, na medida de suas possibilidades, os sábados, os dias santos e os dias de jejum, sem nunca deixar de rezar.
Durante os anos de 1645 até 1647, vários frades eruditos discutiram com Isaac de Castro assuntos de fé, e tentaram converte-lo ao catolicismo. Em nome de Jesus foi ele veemente, censurado e convocado a abrir “os olhos da alma” “à luz da verdade, mediante a qual, pela vinda de jesus ao mundo. Discutiram-se muitas passagens da Bíblia e sua interpretação. Muitas vezes os frades tentaram convencer Isaac de que a vinda de Jesus significava o cumprimento de todas as promessas feitas por D-us ao povo de Israel, pois jesus era o Messias. A reacção de Isaac foi de que as passagens citadas das Escrituras tinham sido falsificadas. Declarou saber muito bem que seria tratado com benevolência pelo tribunal da Santa Inquisição caso aceitasse a religião católica; entretanto não mentiria, pois resolvera não renegar a fé judaica.
Os oficiais da Santa Inquisição chegaram afinal à conclusão de que Isaac de Castro não podia ser convertido a renunciar ao judaísmo, e que ele não tinha a menor intenção de abraçar o Catolicismo.
Foi então que o solicitador geral do Santo Ofício apresentou a nota criminal de queixa contra o acusado. Deram-lhe uma cópia da mesma e Isaac respondeu de acordo com as suas anteriores declarações.
A “Santa” Inquisição fez então novos esforços para converter o réu. Mais uma vez vários frades reencetaram a discussão com Isaac, em vão tentando convencê-lo. Castro recusou pedir perdão e piedade, e tornou a repetir que desejava dar a vida pela Lei de Moisés. Durante o seu interrogatório, a 15 de Novembro de 1647, todos os inquisidores se ajoelharam e ordenaram a Isaac de Castro que fizesse o mesmo; ele porém recusou-se.
Viu o tribunal, em sua obstinação, um grande perigo, receando que uma tal atitude viesse a “perverter e infectar” outras pessoas com as suas “falsas opiniões e heresias”, e a 17 de Novembro de 1647 condenou o réu a ser entregue à justiça secular, expressão usual dos tribunais da Inquisição para a pena capital, assim “lavando as mãos” na responsabilidade pela morte do réu. Assim rezava a sentença:
Invocando o nome de Jesus, declaramos o delinquente José de Lis ou Isaac de Castro réu culpado e confesso do crime de heresia e apostasia, e que ele era e presentemente é herético e apóstata da nossa “santa” fé. É condenado a excomunhão máxima, ao confisco de todos os seus bens em favor do fisco e da Real Câmara, e outras penalidades legais estabelecidas contra semelhantes delinquentes. E como apóstata herético, convicto e confesso, profitente, afirmativo e pertinaz, o condenamos a ser relaxado à justiça secular, pedindo com grande instância se haja com ele benigna e piedosamente, e não proceda a pena de morte nem efusão de sangue.
Isaac de Castro apareceu no auto-de-fé de um domingo, 15 de Dezembro de 1647, com mais outros trinta e quatro judeus, no Terreiro do Paço (praça fronteira ao Palácio Real), em frente ao apartamento da rainha. Achavam-se presentes ao “grande espectáculo” o rei e a rainha de Portugal, seus filhos, todas as principais autoridades, o embaixador da Inglaterra, o representante diplomático da França, Monsieur Lasnier e o povo de Lisboa. A cerimónia do auto-de-fé começava com uma procissão saída do tribunal da Inquisição para a Praça do Palácio Real, onde se erigira um grande palanque de madeira. À frente da procissão vinha o estandarte da “santa”Inquisição, seguido pelas ordens religiosas de Lisboa. Seguiam-nos, por ordem, primeiro os condenados a penas leves, depois os condenados às mais severas, todos com um traje especial de algodão amarelo com diferentes pinturas e com tochas nas mãos. Os últimos da procissão eram os condenados à pena de morte. Precedia-os um crucifixo com o rosto de Jesus voltado para eles. Seus trajes eram pintados com figuras grotescas de demónios e pinturas imaginativas dos condenados em meio às chamas do inferno. Grandes chapéus pontiagudos cobriam suas cabeças. Acompanhavam-nos os seus confessores, quase sempre jesuítas. Em Lisboa eram igualmente acompanhados pela Irmandade de S.Jorge.
Chegando a procissão à praça, e tendo as autoridades e os condenados tomado os lugares que lhes haviam sido reservados no palanque, uma alta autoridade eclesiástica fazia um sermão, em seguida as vitimas iam para a frente em grupos de seis para ouvir, de joelhos ante o altar, a sentença pela primeira vez lida em público, para em seguida pronunciarem as fórmulas da abjuração de seus erros.
Após a notificação das sentenças, tinha ainda o condenado uma possibilidade de salvar a vida. Declarasse apenas que resolvera abraçar o catolicismo, e a sentença da morte seria comutada em cárcere perpétuo. Isto significava, literalmente, prisão por toda a vida, mas era na pratica uma prisão de três a cinco anos, algumas vezes apenas a reclusão em algum convento ou aldeia de Portugal, Angola, Goa ou no Brasil.
Terminado o espectáculo do auto-de-fé, eram os condenados, em Lisboa, conduzidos para a Relação, onde era pronunciada a pena de morte.
Nesse momento o delinquente tinha o privilegio de declarar que desejava morrer católico. Nesse caso, não seria queimado vivo na fogueira, sendo-lhe outorgada uma morte mais rápida. Estrangulavam-no então com uma gola de ferro arroxada por um parafuso, o Garrote, e só depois disso era o seu corpo entregue às chamas.
Em todo o seu trajecto o jovem Isaac de Castro recitou a frase Eli Hashem Zebaot, o Eterno Dos Exércitos (Celestiais) é Meu D-us, depois de arder nas chamas por algumas horas e já com a cabeça envolta em chamas reuniu as derradeiras forças para pronunciar suas ultimas palavras: "Shemá Israel Adonai Eloheinu Adonai Echad", (Ouve Israel O Eterno é nosso D-us, O Eterno é Um), recitado pelos heróis que se santificam ao morrer em defesa da sua fé, e expirou como um mártir sagrado da fé. Muitos anos depois deste evento divertia-se o povo de Lisboa com as palavras "Shemá Israel.." recitadas por Isaac de Castro no dia da sua morte, de modo que inquisição se viu forçada a proibir essa exclamação de fé israelita sob ameaça de pesados castigos. O heróico fim do Jovem mártir abalou tanto os inquisidores, que estes decidiram não queimar mais ninguém por certo tempo.
Fonte: "Lusitânia judaica".