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domingo, 18 de dezembro de 2011

Portugal poderia ter feito mais pelos judeus de origem portuguesa




Chegaram à Península Ibérica muito, muito tempo antes de Portugal nascer, ainda no século I, quando a Lusitânia fazia parte do Império Romano. Conheceram os reinos cristãos anteriores à invasão muçulmana, foram protegidos pelos primeiros reis de Portugal até ao édito de expulsão, foram perseguidos como cristãos-novos, primeiro no continente, depois no Brasil ou na Índia conforme o longo braço da Inquisição lá foi chegando, começaram a regressar no século XIX mas nunca voltaram a ser uma minoria importante.
Carsten L. Wilke, doutorado em Estudos Judaicos pela Universidade de Colónia, Alemanha, e investigador no Instituto Steinheim de História Judaica Alemã, em Duisburg, aceitou o desafio de condensar em apenas 250 páginas destinadas ao grande público a história dos judeus portugueses. Uma história que o autor considera bem estudada, sendo numerosos os trabalhos académicos, e claramente autónoma da dos outros judeus da Península Ibérica, uma história que, no entanto, é mal conhecida pelos não especialistas num país onde raramente os livros escolares lhe dedicam mais do que rápidas - e escassas - referências.
O que começou por fasciná-lo na história dos judeus portugueses foi o facto de estes gozarem de um estatuto de protecção muito superior ao tinham noutros países na Idade Média. Porquê esse estatuto excepcional?
A protecção excepcional de que beneficiaram os judeus portugueses deriva do poder muito maior que tinham os reis em Portugal. As condições da reconquista criaram, até pela fuga de parte da população muçulmana, condições especiais para que os reis e os aristocratas protegessem os judeus contra as aspirações da Igreja e o preconceito popular. A Casa Real também utilizou os judeus como instrumento de centralização de poder.
Nessa relação não terá também tido influência não termos vivido um regime medieval clássico, de os reis, para dominarem o território, terem outorgado cartas de foro a muitas povoações dando-lhes grande autonomia?
Os judeus nessa época não viviam apenas nas cidades, não eram só comerciantes. A distribuição das suas populações era dispersa durante toda a Idade Média. Em Portugal sabemos que estavam muito presentes nas zonas rurais do interior, de Castelo Branco a Bragança. Para além disso, utilizaram os judeus para povoarem as zonas que iam conquistando aos mouros...
Recentemente um estudo genético mostrou uma forte presença de genes mais frequentes entre judeus nas populações do sul da Península, Portugal incluído...
Li vários artigos sobre esse estudo que me surpreendeu muito. Por um lado temos toda a pesquisa documental, que apontava num sentido, e depois esse estudo genético que aponta numa direcção diferente. A documentação apontava para Trás-os-Montes, para a Beira Interior, e agora os traços dos genes apontam para sul. A sede, por assim dizer, do cripto-judaísmo português sempre foi Bragança. Temos de investigar mais, mas a presença mais forte de genes a sul poderá mostrar que a mistura foi mais forte a Norte do que a Sul.
Os primeiros sinais da presença judaica em Portugal datam do ano 69 DC, por altura da segunda destruição do Segundo Templo, agora pelos romanos. Aqui viveram ainda com o Império, depois viveram nos múltiplos reinos cristãos que se formaram, por fim sob a dominação árabe. Foi no período do Al Andaluz que viveram melhor?
A situação dos judeus conheceu uma enorme melhoria com a invasão muçulmana. Antes era frequente os reinos cristãos tentarem converter os judeus ao cristianismo pela força: ou se convertiam ou eram expulsos. Muitos viam-se obrigados a prosseguir os seus ritos clandestinamente e se eram descobertos faziam deles escravos. Não custa a crer que essas comunidades judaicas tenham apoiado a tomada do poder pelos muçulmanos. Ao mesmo tempo, os muçulmanos perceberam que os judeus podiam ser-lhes úteis para controlarem um território onde as populações cristãs eram mais numerosas do que as islamizadas.
Mas essa benevolência não durou sempre...
Não. Houve períodos em que a Península esteve dividida em vários reinos rivais, houve uma nova invasão vinda do Norte de África e com ela vieram dirigentes islâmicos mais fanáticos que, também eles, queriam converter tantos os judeus como os cristãos ao islamismo. Isso sucedeu por volta do no século XII, época em que os judeus voltaram a ser melhor acolhidos nas áreas cristãs da Península e migraram de sul para norte.
Esse período coincide com a criação do Reino de Portugal, com a tomada de Lisboa. O que se sabe sobre os judeus que aqui viviam?
Infelizmente muito pouco, pois investigou-se mais o que se passava em Granada ou em Córdova. Nunca se colocou a questão de saber qual a diferença na área de Portugal. Há um documento interessante que mostra que a autoridade máxima judaica na Lusitânia tinha, na época muçulmana, um poder como não existia em nenhuma outra comunidade. Podia realizar julgamentos, determinar penas, condenar à morte. Dir-se-ia que o extremo ocidental da Península, e da Europa, era o "wild west": havia pouca autoridade mas havia homens poderosos. Isto também ajuda a explicar a protecção que os primeiros reis de Portugal deram aos judeus. No fundo tiraram partido de uma elite mais culta e com algum poder que os podia servir.
O que sucede é que a mudança de atitude dos reis portugueses vai ter lugar nos séculos XV e XVI, que são os dois séculos de glória de Portugal. Um dos primeiros reis a perseguir os judeus é D. João II, para os portugueses O Príncipe Perfeito.
Exacto, quando o seu pai, Afonso V, foi o rei que se destacou na protecção dos judeus.
D. João II foi o rei das grandes expedições. Onde estavam os judeus no seu tempo?
Financiavam os investimentos necessários. E muitos eram os estudiosos, os sábios, os que apoiaram com estudos, levantamentos e mapas essa epopeia.
Porquê então a mudança de atitude?
Temos de perceber o que era o Portugal de então para os judeus no quadro de uma Europa que, no século XV, foi terrível para esta minoria, que era perseguida por todo o lado. Muitos dos judeus fugidos foram acolhidos em Portugal por D. Afonso V, boa parte deles vindos de Espanha que os expulsou muito antes de nós. Nessa época só dois estados aceitavam os judeus que estavam a ser expulsos de todo o lado: Portugal e a Polónia. D. João II continuou a receber os judeus como o pai, mesmo sendo menos hospitaleiro, pois a sua principal preocupação era consolidar o seu poder pessoal contra os poderosos do reino e as diferentes elites. O que por vezes influencia a sua imagem negativa junto dos judeus foi ter enfrentado a Casa de Bragança, aliada dos judeus, o que indignou Issac Abravanel cujos escritos influenciaram a imagem negativa, na historiografia judaica, de D. João II. Mesmo assim é verdade que, nesse reinado, o estatuto dos judeus se degradou, mas nada que pudesse anunciar, ou mesmo fazer prever, o que viria depois.
D. Manuel, que lhe sucede, tem um comportamento diferente dos Reis Católicos: não força a expulsão, antes permite a permanência dos judeus desde que se convertam ao cristianismo. À primeira vista parece uma atitude mais humana, mas muitos pensam hoje que foi muito mais cruel...
Sem dúvida. Do ponto de vista da história do judaísmo foi mais cruel, muito mais duro, aquilo que Portugal fez. D. Manuel tinha muito mais necessidade de manter a comunidade judaica do que os Reis Católicos, e por isso tentou evitar que ela se exilasse. Há séculos que as finanças da coroa eram administradas por judeus, reinado após reinado eles eram como que os ministros das Finanças. A tensão que se criou com Espanha foi que os Reis Católicos não podiam tolerar uma presença tão forte dos judeus em Portugal e D. Manuel sabia que não podia haver expansão portuguesa sem estar em paz com os seus vizinhos. Daí que tentou a quadratura do círculo: ficar com os judeus conseguindo que eles se convertessem. Fê-lo por interesse, se bem que tivesse começado a surgir em Portugal uma classe que queria competir com os judeus no comércio internacional, gente que não aceitava o monopólio dos judeus.
Para os judeus a conversão forçada foi então pior do que a expulsão?
Claro. Para os religiosos, era intolerável aceitar uma religião estrangeira. Para os comerciantes e para elite era a catástrofe. Lisboa era o centro do mundo, o lugar central da mudança da economia mundial. Se pensarmos que tinha sido aos judeus que D. Manuel dera a possibilidade de gerir os negócios coloniais, a sua expulsão ou conversão forçada resultaria sempre em catástrofe. Viveram um dilema terrível: não podiam sair, porque o rei impedia-os, e não podiam senão praticar o judaísmo clandestinamente. Eram judeus em casa, cristãos na rua. Pior: D. Manuel procurou integrar os cristãos novos e permitiu que continuassem a negociar e prosperar, tendo até benefícios da coroa. O horror estava nas conversões forçadas, sobretudo das crianças arrancadas aos pais e, mais tarde, na ferocidade da Inquisição. É nessa altura que os judeus que podem fugir começam a fazê-lo.
E o que se passou nas colónias? Os judeus, ou os cristãos-novos, desempenharam um papel central na florescente economia do Brasil antes de a Inquisição lá ter chegado.
Houve vários motivos para que a civilização cripto-judaica tenha podido sobreviver mais tempo no Brasil. Por um lado, o território era vastíssimo. Por outro lado, a coroa preferiu, durante muito tempo, manter o Brasil na dependência de Lisboa e isso teve como consequência que a Inquisição não pôde instalar um tribunal próprio na grande colónia. Finalmente é bom recordar que muitos dos judeus fugidos de Lisboa se instalaram nos Países Baixos e que estes também chegaram a ocupar partes do Brasil. Os laços entre essas duas comunidades que se conheciam permitiram um desenvolvimento do comércio que teria sido impossível noutras circunstâncias.
Tudo muda quando a Inquisição chega ao Brasil?
Sim. Isso passa-se no início do século XVIII, quando se instala no Rio de Janeiro. É nessa altura que centenas de brasileiros, acusados de cripto-judaísmo, são perseguidos, condenados e mortos. A historiografia estabelece de forma clara que essas perseguições estão ligadas ao declínio da prosperidade do Brasil, na época mais rico do que as colónias inglesas que dariam origem aos Estados Unidos. Mas isso só se tornaria claro no século XIX, graças ao desenvolvimento do capitalismo e das instituições democráticas nos novos Estados Unidos.
Pensadores portugueses como Antero de Quental pensam que existe um antes e um depois da presença judaica e associam a decadência ibérica à expulsão dos judeus da Península. É verdade?
Temos de distinguir entre judeus e cristãos-novos. Na verdade é uma tese antiga mas que tem um problema: o auge do poder de Espanha e de Portugal ocorre depois da expulsão dos judeus, no século XVI...
Mas ficaram os cristãos-novos, os cripto-judeus...
Exacto. É por isso que temos de ver o que se passou com a Inquisição, sobretudo porque esses cripto-judeus formavam boa parte não só da burguesia mercantil mas também eram artesãos e muitos deles integravam a elite intelectual do país. Com a Inquisição essa camada da população empobrece e os comerciantes são substituídos por estrangeiros, ingleses e franceses. Gradualmente, sobretudo no século XVII, Portugal foi ficando dependente do estrangeiro devido à acção da Inquisição. É neste quadro, que cruza os séculos XVI e XVII, que se pode dizer que a Inquisição enfraqueceu Portugal ao destruir uma parte importante, senão fundamental, da sua elite mercantil e intelectual.

Imagem gentilmente cedida pela Câmara Municipal de Trancoso. Julho de 2010.


O poder real não interveio porquê? Interessava-lhe? Não podia?
contraditórias e levou a soluções de compromisso economicamente insatisfatórias. Isto mesmo tendo podido contar com o apoio dos Jesuítas que, no século XVII, queriam limitar o poder do Santo Ofício e, em Portugal, tiveram uma voz tão distinta como a do Padre António Vieira. Nas colónias, por exemplo, os jesuítas procuraram proteger os cristãos-novos porque perceberam que eram muito importantes para o desenvolvimento das colónias, em especial no Brasil. O conflito foi longo, durou várias décadas após a Restauração de 1640, mas a vitória acabou por ser a das forças mais conservadoras.
Os judeus começaram a regressar a Portugal no início do século XIX, formando comunidades pequenas, as primeiras em Lisboa e nos Açores, só que isso sucede quando na Europa estava a surgir um novo tipo de anti-semitismo, baseado na raça. Como explica?
O liberalismo em Portugal entrou de forma lenta e incompleta e, até ao fim da Monarquia Constitucional, a única religião aceite continuou a ser o catolicismo. A prática do judaísmo era, contudo, permitida aos estrangeiros e começou logo após as invasões francesas, altura em que já havia uma pequena sinagoga em Lisboa, algo impensável em Espanha. Eram grupos pequenos, sobretudo de comerciantes e ligados a negócios com o Reino Unido. Quando, por fim, depois da revolução do 5 de Outubro, o judaísmo foi reconhecido como religião de corpo inteiro, Portugal já se transformara num país de emigrantes, num país pobre que dificilmente poderia atrair grandes comunidades estrangeiras.

Imagem gentilmente cedida pela Câmara Municipal de Trancoso. Julho de 2010.

Contudo teria sido possível que os judeus que tinham saído de Portugal, que até tinham mantido as tradições e a língua, regressassem ao país dos seus antepassados. Não o fizeram, mesmo quando a ameaça nazi se foi tornando cada vez mais clara. Porquê?
Historicamente Portugal teria podido proteger muitos dos judeus de origem portuguesa, mas não o fez. Paradoxalmente isso não se passou em Espanha, onde no final do século XIX houve um movimento de redescoberta dos judeus sefarditas do exílio que funcionaram como "embaixadores" do país na diáspora. Talvez isso tivesse sucedido por a Espanha ter sofrido, em 1898, o choque do fim do Império e Portugal não... Mesmo assim Portugal, quando Hitler já estava no poder, teria podido salvar milhares de judeus descendentes dos que tinham partido séculos antes, mas Salazar nada fez e as comunidades que existiam em Bordéus, em Amesterdão ou em Salónica, por exemplo, foram completamente destruídas.
Quando os judeus são expulsos de Portugal também ainda vivia cá uma significativa comunidade muçulmana. O que é que lhe aconteceu?
O édito não visava apenas os judeus, também obrigava os muçulmanos a partirem. Contudo essa comunidade não só era muito mais pequena como, do ponto de vista económico e cultural, tinha muito menos influência. As consequências da sua saída seriam sempre menos importantes. Para além de que, como escreveu Damião de Góis, houve sempre uma grande diferença no tratamento dos judeus e dos muçulmanos porque estes tinham estados poderosos que poderiam defendê-los. Os judeus é que não tinham quem os defendesse.
Por outro lado, nas zonas rurais, era comum os muçulmanos converterem-se ao cristianismo, e os cristãos ao Islão, conforme o poder do momento. Já os judeus, habituados a viver em minoria, resistiam mais a mudar de religião. Isso vê-se bem nos autos da Inquisição, onde também os casos de cripto-islamismo são muito menos numerosos do que os processos por cripto-judaismo.




Judiaria da Guarda


de Carsten L. Wilke


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